domingo, 19 de maio de 2013

ACESSO


Arthur Ferreira Jr.'.




Ela se cansou dos garotos de sua cidade. Novo Portal havia se tornado monótona demais para o seu gosto. Passava cada vez mais tempo na internet. Havia se cansado dos garotos de seu próprio país. Olhava para a tela do computador e só lia besteiras, então, quem sabe procurando em chats com estrangeiros?
Muita gente falando em péssimo inglês.
Oh, um egípcio, ela pensou, que interessante, como será a vida dele nesse país que acabou de sair de uma revolução? E a internet foi tão importante nesse acontecimento, e a coisa era tão recente, que era uma ótima maneira de puxar conversa com o gringo ... tekeli@li era o nick que o identificava na tela.
Mas que homem lindo, ela pensou. Talvez a webcam dele não fosse de muita qualidade, estava meio na penumbra, também... mas podia enxergar razoavelmente bem aquele homem de pele bastante morena, quase negra, mas que não pertencia a um homem negro de verdade, as feições dele eram diferentes, lábios mais finos, nariz bem aquilino – bem, ela não havia estudado isso, mas deveria ser um genuíno hamita dos que eram citados nos livros de história!
Isto a excitou muito.
Ela começou a digitar num inglês ruim, e ele também respondia numa linguagem um tanto quanto truncada mas com frases bastante charmosas – em pouco tempo a garota despejava seus segredos, sua vida, suas fantasias sexuais, sobre o estrangeiro, e ele parecia muito curioso, muito ávido de saber sobre ela. Sua voz era um tanto melíflua e seu sotaque bastante estranho, exótico, fascinante, algo que a lembrava de épocas antigas que ela nunca vira.
Então, num acordo tácito, a conversa mudou para uma espécie de sexo virtual. Ela digitava com sofreguidão a descrição dos atos que queria cometer sobre ele, beijar os lábios do egípcio era o mínimo que queria fazer. A voz do estrangeiro se propagava no quarto da garota, e ela não notou que o ar-condicionado foi parando.
Estava sozinha em casa, não ligava para nada, só para seu lindo Faraó Negro.
Gemia e ronronava para ele, que começou a grunhir, entrando no que ela achou que era um orgasmo – mas já?
E ela, também, muito excitada, aproveitou a exibição do outro para brincar consigo mesma... até que foi interrompida. Uma massa pegajosa cobria a tela da webcam do estrangeiro do outro lado do mundo, mas não era a substância que ela talvez esperasse.
Era um protoplasma fervilhante, amorfo, vivo, que se mexia.
O rosto do Faraó se retorcia, derretendo... e ela não conteve um grito de pavor.
A tela começou a mostrar dezenas de imagens, dividindo a tela, imagens que ela nunca antes sonhara em presenciar: visões de 150 milhões de anos atrás, uma rebelião primordial que assassinou vários da antiga raça dominante do planeta, seres alados, com cinco membros em volta do corpo, derrotados por formas mutantes que se erguiam dos mares.
A divisão das pequenas telas na sua grande tela de computador não obedecia a uma simetria precisa, mais que isso, não obedecia à própria geometria que ela normalmente perceberia no mundo normal. As imagens pareciam em 3D, muito embora a tela não fosse tão avançada assim. Mais do que 3D, algo além. E feriam a retina, a mente, da garota tão curiosa.
As imagens avançaram pelas eras, e a garota continuava a gritar, suas mãos crispadas em volta do teclado, que ela erguia próximo ao rosto, tirando-o da mesa e quase arrancando o fio que o prendia ao computador. Imagens dos milhões e milhares de anos se passando, até que se focaram nas margens do Nilo, onde um shoggoth vadeava as águas – o povo mutante, amorfo, criado como servidor há milhões de anos – presenciando a chegada de um homem (seria mesmo um homem?) de rosto tão igual ao exótico estrangeiro. Diante dele, os felás se ajoelhavam.
Depois dessa parada, os anos se transcorreram com imensa rapidez nas telas múltiplas, dividindo-se, como por fissão, sobre a superfície da grande tela. A garota não conseguia reagir, não conseguia fugir daquele espetáculo mutável, uma arte visual viva que se contorcia.
Outros equipamentos se desligam pela casa da garota.
A casa toda fica às escuras, e só o computador continua ligado, mostrando aquelas imagens aceleradas, hipnóticas, reveladoras; e num dado momento elas mostram uma coisa assumindo a forma humana, imitando seres humanos e também a uma entidade que os cultos chamavam de Caos Rastejante ... um caos vivo como o shoggoth, assumindo formas inúmeras, embora muitas humanoides.
Em meio àquela confusão, uma voz mesmérica dançava nos ouvidos da garota, "Aquele de Vida Prolongada te revela, somos todos Antigos, deuses nos abismos das dimensões superiores, minha criança... pela Terra, vários seres que sou eu mesmo se deslocam, e por todo o universo. Mas você não sou eu, nem ele que se precipita sobre ti. São Nyarlathotep e Yhoundeh, ele e você, porém mal sabem disso. Ele anseia pelo Caos e por você."
E então o barulho de travamento da máquina, como se o HD estivesse com problemas sérios; mas as imagens continuavam céleres... até que uma horrenda massa protoplásmica escorreu dos circuitos da máquina, quebrando suas placas internas, mas as imagens continuavam se repetindo no monitor. E a voz falou antes de se calar, "Estejam sozinhos." O bairro de Mirantes do Grotão obedeceu com um blecaute, e logo em seguida, toda a cidade de Novo Portal.
A garota gritou, chocada ao limite da loucura, e a enorme massa borbulhou e despejou seu conteúdo revoltante sobre todo o quarto... cobrindo o corpo da menina, que gritava desesperada.
A substância viva contorceu-se mais uma vez, e parou... inerte. Em meio àquela protoplasma antes cheio de vida, exaurido pela inserção de filamentos tão mínimos pela rede mundial de computadores, pela chegada ao outro lado, tão dolorosa aos órgãos criados espontaneamente... o cadáver de uma garota, morta, não se sabe de medo, asfixia ou de pura revelação.






Versão revisada e levemente alterada de conto publicado anteriormente com o nome de Meu Querido Shoggoth

sábado, 4 de maio de 2013

INTERVENÇÃO DE YUGGOTH

Arthur Ferreira Jr.'.





I’ll take your brain to another dimension
Pay close attention
I'm gonna send him to outta space
To find another race

Prodigy, Out of space



“SAIA DA MINHA CASA. VOCÊ NÃO me respeita!” Era uma das piores coisas que eu podia ouvir, porque eu não tinha mais para onde ir. E ela tinha razão: se aquele material fosse achado – e confiscado – seríamos os dois presos, eu e ela, minha mulher. Mas mesmo assim, eu estava com a razão. Era humilhante a situação, não podíamos continuar.

    Não me refiro ao nosso casamento e àquele espetáculo que ela dava na frente dos vizinhos. Para o próprio bem dela, ela não mencionava qual era o desrespeito, parecendo uma briga normal de um casal, coisa natural depois de dois anos de união. Me refiro aos alienígenas – eu nunca havia visto um pessoalmente, mas era humilhante a situação do Planeta Terra: ou Colônia Yuggoth-3, como descreviam os documentos secretos.

    Todos os humanos – ou a maioria dos humanos, incluindo minha esposa – enxergavam os alienígenas como os Grandes Benfeitores. Afinal de contas, não tínhamos mais doenças, as guerras eram uma questão regulamentada por um governo mundial, pouco a pouco o problema da fome estava sendo resolvido… os Grandes Benfeitores se diziam representantes de uma Ordem Universal e sua intervenção seria benéfica, impedindo a autodestruição da humanidade; e o governo mundial da Terra agora fazia parte dessa Grande Ordem Universal.

    Tudo muito bonito, e não era nada bonito ser despejado, mas a casa era dela. Os Benfeitores nada havia dito sobre propriedade comunal – como se delirava que poderia ser uma utopia – nem haviam feito nada para diminuir desigualdades sociais e econômicas. A violência local também continuava bastante comum.

    E era com essa violência que eu precisava me preocupar, vagando pelas ruas do bairro, com aquela mochila imensa portando os últimos pertences que me restaram. Eu não podia entrar com uma ação para reaver eletrodomésticos deixados em casa, porque isso chamaria a atenção para mim. Depois que M. L. fora baleado, não havia mais ninguém da Conspiração em meu alcance imediato, ninguém a quem eu pudesse pedir abrigo.

    Pelas ruas fui andando, tentando me recuperar da humilhação na porta do prédio. As pessoas observavam sem intervir, mas eu sabia que por dentro se compraziam, era mais um escândalo, mais um espetáculo. E espetáculos chamam muita a atenção, eu precisava sair depressa do lugar que não podia mais chamar de lar.

    Acabei dando numa área que não era um dos piores bairros, mas também não era como o bairro de classe média alta onde eu vivia. Estava mais longe ainda do condomínio de luxo em que morava, um ano e meio antes.

    Ruas não muito cheias. Mas quem passava na rua parecia me olhar fundo como se eu fosse um intruso. No meu desespero de passar despercebido, talvez chamasse ainda mais atenção.

    “Psssst!” sussurrou uma voz. “Aqui, irmão.”



O HOMEM FAZIA UM SINAL COM A MÃO – o pulso e os dedos se mexiam do jeito característico de um iniciado da Conspiração. Só que aquele era um mendigo: barba desgrenhada, um olhar levemente desfocado, roupas um tanto escuras, de tão sujas.

    “Vamos,” insistiu o homem. Ele apontava para uma padaria que estava quase fechando. A impressão que dava a qualquer um que nos olhasse de longe era que o mendigo estava pedindo que lhe pagasse uma comida qualquer. Um sujeito foi passando pela calçada, olhando desconfiado. “Estou amarelo de fome,” implorou o mendigo, de repente.

    Agora não haviam mais dúvidas, era uma das senhas da Conspiração. Fiz menção de me apiedar do (imagino que falso) mendigo, e entrei com ele na padaria.

    Pouco havia mudado, em termos de tecnologia, nos vinte e tantos anos desde que vários líderes mundiais entraram em súbito acordo e formaram a Sinarquia, o governo mundial que liderava em nome dos alienígenas. E estranhamente, havia tido pouca resistência, exceto nos cantos mais sórdidos do planeta, sendo que esses tinham, também, pouca condição efetiva de resistir. Parte disso se deve tanto a pronunciamentos de líderes religiosos quanto de cientistas acreditados pelo público. Os religiosos mostravam a benevolência dos extraterrestres, aludindo a aparições nos mitos de suas próprias crenças, como se estas sempre houvessem sido intervenções dos Benfeitores – e esse discurso vinha tanto de cristãos quanto muçulmanos, bem como judeus, budistas e várias religiões majoritárias do mundo; faço questão de dizer majoritárias, porque os extraterrestres não se importaram em plantar seus agentes, pelo menos não aqueles que teriam visibilidade na mídia, em grupos religiosos de pouca importância.

    A mesma coisa se deu com os cientistas: aqueles com pouco respeito perante a mídia, ou o grande público, ou sem laços com os governos, não foram os que mostraram inequivocamente que a humanidade estava no caminho certo da autodestruição, se não aceitasse a ajuda dos Benfeitores. As duas maiores questões apontadas por esses cientistas eram a ecologia e a saúde. O mundo estava aterrorizado com novas epidemias que pipocavam a cada poucos meses, e com o surgimento de novas doenças que eram incuráveis ou que matavam em pouco tempo. O mesmo terror indisfarçável, embora menos discutido, vinha do alarde das condições precárias da vida na Terra. Só um governo mundial, articulado de modo a impedir as emissões de carbono na atmosfera, a poluição indiscriminada nos mares, a dispersão do lixo pelo mundo, poderia salvar a Terra; só que ninguém estava disposto a dar o primeiro passo.

    Pois bem, os alienígenas estavam ali para forçar esse primeiro passo, e de quebra, poderiam paulatinamente remover a mácula que a humanidade deixara no planeta nos últimos séculos, reverter o estrago feito no meio ambiente. Se os extraterrestres se ofereciam para sanar a Terra, também – como um bônus, uma demonstração de boa vontade – sanariam os corpos da raça dominante do planeta, nós, humanos. E assim foi que praticamente todas as doenças foram erradicadas, embora ainda dependamos das vacinas dos Benfeitores.

    Por isso tudo, aquela padaria se parecia bastante com uma padaria de vinte anos atrás, se não fosse o fato de que ela era paranoicamente higienizada (de quando em quando, uma nova doença surgia e várias pessoas morriam, mas era rapidamente debelada pela tecnologia médica dos alienígenas; esses surtos um tanto periódicos chamavam muita atenção e criavam o hábito de prevenção acirrada contra infecções) e que não havia ninguém tossindo, nem mesmo pigarreando, como acontecia muito no friozinho da manhã.

    Tudo muito límpido, e me fazia perguntar porque, afinal, eu me opunha aos Benfeitores. Acontece que eu sabia coisas além das que o grande público sabia; coisas que a Conspiração, a Irmandade do Signo Amarelo, sabia, por combater nas sombras os alienígenas.

    Eu fazia parte da Conspiração.



O PADEIRO E A ATENDENTE LEVANTARAM OS OLHOS de modo insinuante ao me ver entrar com o mendigo, mas não disseram nada... talvez porque um outro sujeito entrou na padaria, ficou olhando as mercadorias e levou bom uns dez minutos nesse processo lento. Talvez estivesse me espionando.

    Por fim, saiu meio apressado, quase tropeçando na entrada, sem comprar coisa nenhuma. Enquanto isso não aconteceu, o mendigo comia devagarinho o sanduíche que comprei para ele. Não demorou nem quinze segundos do outro sujeito ter saído, o mendigo agradeceu muito e saiu também quase correndo.

    Fiquei atarantado, mas o que seria aquilo? Ele não era da Irmandade?

    A atendente então virou-se para mim e disse, “Você viu o Signo Amarelo?”

    Aquela era a senha mais imprudente e óbvia! Não tive dúvidas de aquilo era uma mera fachada da Irmandade, respondi de modo a demonstrar meu posto na célula que fora destruída, ao que ela sinalizou para uma porta nos fundos da padaria e pediu que a seguisse.

    Descemos três lances de escada até chegar a uma espécie de porão, onde haviam mais duas pessoas, um homem e uma mulher. O padeiro de olhar insinuante ficou lá em cima, provavelmente vigiando e continuando a vender normalmente suas mercadorias. Não havia muita coisa no tal porão exceto um monte de caixas, um banquinho e uma espécie de maquinário num canto úmido e escuro. Fizemos os cumprimentos de identificação e começamos a partilha.

    “Kristian Germano, da Sinarquia, desapareceu há dois dias,” informou o homem vestido de amarelo e vermelho. Aquela frase me trouxe calafrios: Germano era o homem que havia me substituído no Gabinete, depois que uma discussão me deixou sem emprego e com vários bens confiscados devido a uma denúncia forjada. Então aquele seria o meu destino se eu não tivesse saído de lá? “Provavelmente,” continuou o homem, arregalando um pouco os olhos, “Germano recebeu o Convite dos Alienígenas. Os resultados de suas avaliações eram excepcionais, e seu cérebro renderia uma ótima análise para os mi-go.”

    Era esta uma das razões pela qual a Irmandade existia: os mi-go (assim eram denominados os Alienígenas no Dossiê Wilmarth, um dos mais importantes documentos à disposição da Conspiração, junto com tomos antigos como os Manuscritos Pnakóticos, a Teratosofia e Arte Divina de Klarkash-Ton) instigavam uma elite entre os humanos, que recebia alterações e melhorias em seus corpos, muito além da imunidade concedida a toda a raça humana. A maioria dessas mutações era sutil, mas poderia produzir benefícios como resistência excepcional, sentidos aguçadíssimos, a capacidade de contorcer-se, mudança lenta e voluntária da aparência, e coisas mais mundanas como potência sexual acima do normal. Dessa elite, chamada de Sinarquia, alguns eram convidados para Ascender – transcender o próprio corpo. A Irmandade do Signo Amarelo sabia perfeitamente o que isso queria dizer: ter o cérebro removido através dos prodígios cirúrgicos dos Fungos de Yuggoth, e preservado para todo o sempre num cilindro cheio de líquido nutriente.

    O cérebro poderia então sobreviver às viagens pelos túneis de luz dos mi-go… às quais um humano normal não resistiria. Os Fungos vinham não de um planeta na borda do sistema solar – aquilo era só outra colônia habitada – mas de dimensões além da membrana do nosso universo. Lá não poderíamos sobreviver; exceto passando pela cirurgia e preservação como um... cérebro sem corpo. Como dizia o Dossiê Wilmarth, 'todas as transições são indolores e há muito que desfrutar de um estado inteiramente mecanizado de sensações. Quando os eletrodos são desligados, a pessoa apenas mergulha num sono cheio de sonhos bastante vívidos e fantásticos'.

    Acabei citando esse trecho em voz alta. A mulher de amarelo e azul virou-se para mim, e comentou: “Era isso que as criaturas tentaram impingir a Wilmarth, mas não conseguiram; a Ascensão só conduz a uma escravidão, sofrendo de audição e visão deficientes através de instrumentos, perda dos centros hormonais e entrada num estado de loucura além das emoções normais... sem contar que sabemos que também o Dossiê registra que 'os seres que ali vivem emitirão correntes mentais em nossa direção e provocarão a descoberta do planeta...' Foi mais do que isso que aconteceu, toda a humanidade está dominada por essa... egrégora, para usar um termo da Teratosofia; uma paz amarga, ajudada pelas emanações mentais dos mi-go e assegurada pela conivência da Sinarquia; e os Ascensos são os mais suscetíveis a essas emanações, tenha certeza.

    “Então você foi expulso de casa, Irmão?” interrompeu aquela que se passava pela atendente, com o mesmo olhar insinuante e quase vidrado do falso padeiro lá em cima. “Temos que dar um jeito em sua mulher, sua ex-mulher, antes que ela...” de repente um estrondo na porta fez todos pararem e olharem para cima; a porta havia sido reduzida a destroços e lascas, e um homem empunhando uma pistola saltava pela escada. Não! Havíamos sido descobertos! E tão cedo!

    O intruso aterrissou, num baque tremendo, no chão sujo do porão, de tal forma que teria quebrado as pernas, se eu não tivesse certeza de que aquelas pernas haviam sofrido alteração alienígena, e gritou: “MORTE AOS CONSPIRADORES!”

    Numa velocidade alarmante, antes que os outros Irmãos pudessem reagir, o exterminador atirou uma rápida sucessão de tiros, atingindo no centro exato da testa de cada um deles... o sangue esguichava como se a gravidade fosse mais leve, como se o meu horror e a iminência de minha própria morte houvesse suspenso parte das leis da física! Menos de três segundos e estava tudo acabado, minhas roupas manchadas de sangue humano.

    Pensei que o exterminador fosse apontar a arma para mim e terminar tudo em grande estilo, já que não havia me incluído naquela exibição dramática de domínio da arma... mas, não.

    “Por quê... eu já não estou morto?” perguntei, ofegante, esmagado contra o chão, nas raias do pânico.

    Era estranho. O homem se parecia comigo – ou uma versão minha dez anos mais jovem, ou meu filho, ou... Ele continuou calado, e jogou a arma no chão, só aí dizendo: “Não, não posso te matar, é impossível.”

    “Mas por quê não? Eu sou um conspirador!”

    A figura respirou fundo, me olhou direto e fundo nos olhos e disse, num tom de voz estranho, como se fosse... um zumbido... “Pare de conspirar contra si mesmo.”

    Zumbido? O Dossiê Wilmarth dizia que os Alienígenas recebiam implantes para falar as línguas humanas, como se fossem zumbidos de abelhas do além... Mas a voz do assassino era um zumbido distante, como se ele não estivesse ali... e aquele homem não parecia um Fungo de Yuggoth, aquela mescla de crustáceo e fungo cheio de antenas e tentáculos na cabeça, aquilo não era uma abominação invasora da Terra, aquilo era um homem como eu!

    De repente tudo me ficou claro – a própria citação do Dossiê explicava aquilo! Mas... não era possível... tudo começou a ficar borrado, a sala foi se esvaindo como uma pintura descascando, minhas emoções – o próprio horror e pânico – iam morrendo, e o homem balançava a cabeça, ou o borrão que antes era o assassino diante de mim... 'Quando os eletrodos são desligados, a pessoa apenas mergulha num sono cheio de sonhos bastante vívidos e fantásticos', não havia a menor dúvida, e agora eu sabia, Kristian Germano era eu mesmo, e nunca um substituto!



NUM LABORATÓRIO SUBTERRÂNEO de uma das bases terráqueas dos mi-go, impiedosos controles de sensação foram ajustados, diagnósticos rodaram nos intricados e repugnantes computadores orgânicos acoplados ao solo, e um zumbido se fez ouvir, forte como nunca, sempre aquele mesmo zumbido:

    “...infestação mental do Signo Amarelo erradicada, espécime no cilindro <KG-347> saiu do coma memético induzido pelo vírus, limpeza completa, das fontes da noite aos abismos do espaço, e dos abismos do espaço às fontes da noite... louvado seja Nyarlathotep, o Grande Mensageiro.”









INTERVENÇÃO DE YUGGOTH foi escrito em fevereiro de 2011 e reescrito em julho de 2012 para a coletânea SIMETRIA MACABRA: CRÔNICAS DO MYTHOS DE CTHULHU.

sábado, 24 de novembro de 2012

LIBERTAÇÃO


Arthur Ferreira Jr.'.







I

UM GRANDE ESTRONDO cortou o ar, e os policiais na base do morro viram uma das maiores casas da comunidade de Colinas da Noite se despedaçar e vários dos destroços rolarem abaixo.

Ao contrário da maioria dos casebres e muquifos com laje batida, aquela casa era o símbolo de poder de um dos traficantes do morro, e o Tenente Miguel Dantas sabia muito bem disso. que nenhum dos seus era responsável por aquilo, ninguém sequer havia subido, fora o fato de que ninguém seria louco de estourar uma granada (como parecia ter sido o caso) no covil de um dos maiores traficantes da região. Era mais jogo saquear a casa, conseguir algumas provas, acobertar outras, readquirir algumas das armas do tráfico e ficar com algumas delas para revenda.

O tenente ficou cerca de um minuto olhando a fumaça que se dissipava em cima, até que num movimento brusco, comandou seus homens ao ataque. Os policiais invadiram a favela, e ruela após ruela, pensaram que iam trocar tiros com os traficantes, mas a entrada foi surpreendentemente fácil, sem maiores obstáculos. Algumas pessoas, dentro das casas, berravam desesperadas, e era até compreensível, mas alguns dos gritos tinham um tom de desespero ao qual nenhum dos homens da polícia estava realmente acostumado.

Aquela noite estava especialmente quente, em vários sentidos. Três gotas de suor desceram rápidas pela fronte do Tenente Miguel, e reagindo a seus sinais ágeis, os policiais entraram no que restava do casarão. A casa contrastava com a miséria de suas vizinhas, e era como se a destruição em seu interior e nas paredes externas viesse para exercer uma justiça cruel e poética: uma ruína entre vidas arruinadas. Nos arredores, a Igreja da Libertação de Deus destoava tanto do ambiente.

Dentro, uma carnificina. A coisa era pior do que Dantas pensava. Não a casa estava semidestruída por explosivos plásticos colocados em dois pontos nas paredes, o que evidenciava um trabalho interno, como todos os capangas do dono do morro estavam mortos. Alguns podiam ter sido atingidos pelos estilhaços preparados que faziam parte da engenhosa bomba, e pelo impacto da explosão em si, mas uns três haviam sido estripados de modo selvagem. E numa sala deixada intacta, estava o corpo seminu do dono, exibindo a garganta dilacerada, o sangue manchando os lençóis caros. Mais tarde, a perícia achou vários traços de esperma e fluidos vaginais por esses lençóis... mas nenhuma mulher estava entre os mortos. Nenhum cabelo de mulher pelo quarto, também; mas haviam pelos de algum animal que a perícia ainda está tentando identificar, alguns deles estranhamente longos, do comprimento do cabelo longo de uma mulher.

Outra circunstância esquisita era a das drogas e armas espalhadas pela casa. Embora não pudesse dizer exatamente isso quanto às armas, mas a grande quantidade de drogas estocada significava que algum carregamento fora deslocado para a casa do dono, no mínimo um dia antes. Ninguém havia levado nada. Talvez fosse obra de algum justiceiro... mas o Tenente Miguel achava improvável, mesmo um sujeito assim levaria as drogas e armas, ou pelo menos as armas. Miguel falou no celular, pedindo que a inteligência checasse, nos relatos dos informantes, se o dono tinha uma namorada e os detalhes sobre ela.

Enquanto esperava a resposta, uma coisa chamou a atenção do tenente. Havia crack, cocaína, maconha, ecstasy e até LSD estocados naquela casa, uma variedade inusitada, e perto da janela, havia uma pequena pílula. Largada pelo chão, avermelhada. O policial se abaixou, e com uma luva ergueu a pílula daquela preciosidade. Era de se esperar que houvesse pelo menos algumas daquelas pílulas ali, junto a tanta variedade de outras drogas, mas aquela era a única deixada para trás. BK-14... Belknapius.

Os viciados e a gente das ruas da cidade de Novo Portal a chama de GARRA. O Tenente Miguel a balançou entre os dedos, o vermelho da pílula brilhou à luz das lanternas, e um uivo se fez ouvir fora...



II

O BURBURINHO VAI AUMENTANDO NA IGREJA, conforme eu vou me espremendo pela multidão. Muita gente vestida de terno e gravata, saias compridas, roupas de mangas e golas mais envergonhadas, até mesmo crianças vestidas desse modo, presas em sua ânsia de brincar naquele lugar sagrado. Já era meu costume usar gravata no dia a dia, apesar de ninguém jamais me ver assim durante a noite – a noite genuína, quero dizer, não essa que se sente lá fora, no sereno úmido e na lua redonda. Súbito, o alvoroço da multidão cessa, e ouço retumbar nos alto-falantes uma bateção nervosa feita com os dedos, aquele praxe para checar o áudio e ao mesmo tempo avisar aos devotos que o pastor começará seu sermão. E aquela voz. Vibrante, impetuosa, quase furiosa: “IRMÃOS!”

E nesse momento, eu sei, com toda certeza e verdade: estou na Igreja da Libertação de Deus.

O pastor começa a vociferar aleluias e prometer dádivas divinas aos fiéis, castigo aos impuros e, mais importante, a libertação aos aflitos. Contrariando o que eu em parte esperava – já havia estado em algumas igrejas evangélicas, embora, ao entrar ali, eu já soubesse que não se tratava exatamente uma igreja normal de crentes – o pregador não pediu dízimos nem ofertas, não exaltou a necessidade da Igreja de ser sustentada pelos frequentadores, nem ordenou a passagem de saquinho de doações, nem mesmo usou de expedientes visíveis para forçar a culpa na garganta dos presentes, que poderiam se sentir mal se não contribuíssem. Se eu esperasse um local normal de pregação, estranharia também a falta de culpa nas noções do pastor, já que, embora eles raramente falem essa palavra (lidar com a palavra culpa é algo largado mais na mão dos católicos, acho), a culpa seja algo de que a maioria desses cristãos buscam se livrar – mas que sempre os perseguem. O pastor não falou de culpa, nem pediu dinheiro. Não fez nada disso, e pareceu aproveitar o tempo que essa omissão lhe dava para exemplificar a libertação dos angustiados: chamou a primeira pessoa a ser liberta.



VAMOS RETORNAR ALGUNS MESES. Minha filha ainda estava viva. Cátia era uma garota esperta, cheia de vida, como canta o clichê. Uma moça que eu gostava de acreditar ser inocente (não no sentido de virgindade, mas sim de pureza de caráter, de ideias), de andar nos trilhos da normalidade. Algo lá no fundo me alertava que essa e outras crenças que eu mantinha não passavam de ilusões. Como sempre, não prestei a atenção a essa sensação, até que fosse muito tarde.

Catuxa (era o apelido que minha mulher lhe dera) começou a sair muito à noite, e voltava estranha, seu comportamento alterado. Discutia com a mãe, me xingava, e depois se trancava no quarto. Eu e minha esposa discutimos sobre a possibilidade da menina estar consumindo drogas. Pois bem, estávamos certos, mas aquilo era só a ponta do iceberg, estávamos apenas... arranhando a carne da verdade.


FUI ARRANCADO DO DEVANEIO pelo berro da moça no tablado onde o pastor se movimentava, microfone em punho. Ela chorava, dizia sentir algo dentro de si que a atormentava dia e noite, queixava-se de dores, calafrios, e culpava o diabo. O pastor a agarrou pelos braços, deu cinco sacudidelas bem fortes, gritando nomes estrambóticos, que meses atrás me pareceriam ridículos. Eram palavras arrastadas, diria mesmo guturais, mais surpreendentes e assustadoras que o costumeiro espetáculo do religioso manifestando o pretenso dom de línguas.

Nada daquilo parecia forjado – pelo contrário, a sensação de verdade, de autenticidade, permeava o ambiente. Não havia nada de hipócrita no comportamento do pastor, e eu tinha total certeza disso. Nos últimos tempos, eu desenvolvera um bom juízo de caráter, estando completamente certo de que aquele homem – chamava-se Pastor Neemias – acreditava piamente em tudo que fazia. Mesmo um tanto chocado com a violência do ritual e com as vociferações de Neemias, o estranho era que eu simpatizava com ele.

Mas não com a moça escorrendo baba e convulsionando diante do pastor; ela merecia morrer.



A MOÇA SE PARECIA MUITO com minha filha Cátia. Olhos amendoados, grandes, pele bronzeada, cabelos lisos de índia, os contornos jovens de seu corpo tornados evidentes pela roupa um tanto apertada. Minha filha, tão esperta e cheia de vida. Minha filha, escorrendo baba e convulsionando diante de mim, há cinco meses atrás.

Eu não sabia bem o que fazer. Era uma overdose. Ela não chegara em casa muito bem, trocando pernas, dizendo que enxergava coisas pela casa, reclamava do cheiro forte do lixo que ainda não fora trocado… trancou-se no quarto depois de um breve escândalo, coisa a que já estávamos acostumados.

O que não estávamos acostumados era ao silêncio que se formou na casa, com ela dentro do quarto: normalmente, ela colocaria o som a altos brados, ou então resmungaria coisas estranhas que eram ouvidas no corredor. Forcei a porta, agoniado, e lá estava ela, num estado muito parecido com o da moça sendo curada pelo pastor…



O PASTOR SACUDIA OS BRAÇOS da moça, e num momento julguei enxergar que as unhas do pastor haviam se tornado garras afiadas, e rasgado a carne da menina convulsa. Mas essa impressão não durou menos de quatro segundos; talvez tenha mesmo acontecido.

A moça praticamente desmaiou e foi retirada do palanque por um assistente. Quando passou perto de mim, carregada, eu enxerguei uma marca – praticamente um desenho – um arranhão profundo em seu braço, e ao vê-lo a sensação de que a moça deveria morrer aumentou.

Essas ideias estranhas, esses impulsos mórbidos e imperativos, me perseguiram nos últimos meses. Não sei mais o que fazer, e vim aqui na igreja buscar alívio. Será que vim ao lugar certo?



CÁTIA ESTAVA INTERNADA num hospital, recuperando-se da overdose da qual sobreviveu. Foi nessa época que ouvi falar pela primeira vez da Igreja da Libertação de Deus, pela boca de uma prima.

Ela falava dos milagres realizados pelos Pastores Simão e Neemias, que traziam alívio a endemoniados e viciados. E haviam vários viciados em Colinas da Noite, a comunidade perto de Mirantes do Grotão onde ficava a sede da igreja. Os pastores chegaram até a atrair a atenção dos traficantes da região, mas depois de uma conversa a sós – assim corria o boato – o “dono” do morro deixou de interferir com a Igreja. Talvez tenha notado que essas “curas” não afetavam seu comércio; na verdade, um número cada vez maior de consumidores surgia, e as curas também aumentavam.

Essa última opinião, cheirando a teoria da conspiração, emitida pelo sogro de meu vizinho, não era ouvida nem considerada pelos simpatizantes e defensores da Igreja da Libertação. Meu vizinho mesmo dizia que, no mínimo, a Igreja deveria ter algum valor ou caráter, porque não via as explorações que enxergava em outras igrejas do mesmo gênero. O sogro, seu Raimundo, argumentava que nem toda igreja evangélica explorava, que a Igreja da Libertação de Deus nem mesmo era evangélica de verdade, e que achava que as pessoas que iam lá sofriam uma lavagem cerebral.

Só essa palavrinha desmoronava todo o crédito que eu poderia dar a seu Raimundo. Todos caíam na gargalhada, na rodinha de cerveja em frente ao botequim onde eu me reunia com os amigos, e a coisa ficava por aí, seu Raimundo envergonhado e seu genro acabava balançando a cabeça numa ironia muda, virava mais um copo e todos o imitavam, e o assunto mudava para outro qualquer.

Eu estava frequentando demais aquele botequim, porque o problema de minha filha me angustiava sobremaneira. Os amigos já evitavam tocar nessa questão, e pouco a pouco eu já ia lá sem os amigos – afogava as mágoas na cachaça, sozinho, em plena madrugada, quando a insônia e os pensamentos recorrentes não me deixavam dormir.

Uma culpa, principalmente, não me deixava dormir. Aquilo só podia ser culpa minha, porque minha mulher era tão cuidadosa, e eu, tão distraído. Eu deveria ter sido o pulso firme dentro da casa, ser mais homem, mais pai de família, enfim. Eu estava com quarenta e um anos, mas me sentia uma criança diante daquilo tudo, isso sim.

Queria me livrar da culpa; me libertar.



III

O PASTOR NEEMIAS SE RETIROU do palanque e era a vez do Pastor Simão falar. A voz de Simão era bem mais suave, mais melíflua, quase tentadora. O pastor se enchia de piedade pelos escravos do mundo, dizia. Satanás tinha este mundo preso em suas garras, repetia pela terceira vez. “Irmão,” continuava o pastor de traços magros e tez pálida, olhos muito vívidos mirando a congregação, “sim, estou falando com você que veio hoje pela primeira vez. Não sei quem você é, mas não está mais sozinho. Porque o diabo – o diabo… – o diabo o tinha em suas garras e o afastava do caminho certo, mas você conseguiu fugir dele. Está aqui agora como os outros pintinhos, aninhados pelas asas da galinha, salmo 91, versículo 4. Ficai conosco, irmão! Essa angústia que sentires a será exterminada pela espada do anjo vingador!”

Quando se empolgava, Pastor Simão misturava os tempos verbais e as citações bíblicas, mas ninguém ali estava ligando para isso – só a possibilidade, o aceno da libertação importava. Na verdade, ninguém se importava com a espada do anjo vingador, por mais próxima que ela na verdade estivesse…

O que eles queriam era o êxtase, a glória do Senhor, e isso, ou algum sucedâneo ainda mais viciante que o sentido em outras igrejas, era o que Simão ia lhes dar. Depois de algum tempo falando, e se enrolando, Pastor Simão começava a jorrar bênçãos sobre a assistência, falando em línguas sussurrantes, quase orientais e pseudo-semíticas, um sussurro híbrido, tão alto que era ouvido de um canto a outro da igreja.

Eu não me refiro só à amplificação do alto-falante. Havia algo naqueles sibilos que preenchia a sala, hipnotizava, e as pessoas começavam a também gritar em línguas, dançar frenéticas, rodopiar, pôr as mãos nas cabeças umas das outras, em nome do Senhor… a princípio não parecia nada muito diferente do que eu poderia presenciar em outros lugares assim, mas se numa outra ocasião eu ria daquilo tudo, agora me sentia tocado. A glória me invadia, e queria expulsar a angústia em meu coração.
Não era só isso que era diferente de outras igrejas – enquanto eu dançava ritmado em meio ao povo, vi várias pessoas se beijando compulsivamente, e pessoas que eu pensava que eram estranhas umas às outras. Outras pessoas não eram tão estranhas assim – logo percebi, quando vi duas irmãs se beijando num abraço nada fraterno.

Mas era a glória de Deus, a libertação de Deus. Nada de culpa, nada que me faria lembrar de minha filha… oh, não, mas uma das duas irmãs se parecia tanto que aquela amiga de Cátia que me procurou um dia…



CHAMAVA-SE VANESSA. Lábios finos, um sorriso tímido, cabelos cacheados e castanhos, pálida, baixinha e de óculos, mas muito graciosa. Atenciosa. Depois de um tempo ela largou os óculos e passou a usar lentes de contato de cores estranhas. Às vezes essas lentes brilhavam no escuro, era o que eu percebia quando ela vinha pedir notícias de minha filha, vinda da rua em sua iluminação defeituosa. Parecia estar se vestindo do mesmo jeito que minha filha, mas seu comportamento não era tão preocupante.

Eu me incomodava mais com essas vindas quase à meia-noite, o bairro estava se tornando perigoso naquelas noites, talvez fosse a proximidade da favela... mas por outro lado, aqueles assassinatos que apareciam nos noticiários não pareciam coisa dos traficantes. Os especialistas do Correio de Novo Portal diziam ser latrocínios perpetrados por alguma gangue, e não queima de arquivo ou coisa do tipo.

A última vez que vi Vanessa não havia muito escuro lá fora, porque a lua estava bem cheia no céu. Dava para enxergar um halo bem forte ao redor do satélite, suas cores estavam quase psicodélicas, quando as formas e o rosto da menina ficaram visíveis diante da janela do segundo andar – eu estava arrumando meu armário e quase tomei um susto quando ouvi o “psiu” da amiga de minha filha.

“Vanessa! Que diabo é que está fazendo aí na árvore?”

“Tio,” falou a mocinha a coisa de um metro de distância, “o senhor precisa me ajudar. Deixa eu entrar, escancara a janela pra mim.”

Minha mulher tinha saído naquela noite, visitando uma amiga. Foi uma coisa que de imediato me causou vergonha, mas estar daquele jeito com uma jovem assim, ainda mais amiga da minha filha, me excitou um pouco. Abri a janela.

O que se seguiu foi estranho.

Ela pulou da árvore para dentro do quarto e caiu perfeitamente em pé, a cinco centímetros de mim; seus olhos brilhavam e aquela minha excitação que havia sido tingida de vergonha, se converteu em medo do desconhecido… até que percebi que os olhos brilhavam pela incidência da luz da lua sobre suas lágrimas: ela estivera chorando!

“Tio, ela está morrendo… e eu não pude fazer nada pra evitar!” Desesperada (assim parecia), me abraçou com força. Não tive jeito de reagir ou de a recusar.

A pele dela era quente, o abraço, forte. Mais forte do que deveria ser o abraço de uma menina daquele tamanho. E ela parecia tão cheia de vida… a minha excitação voltou, superando a pena e a confusão. E ela reagiu, rápida, à minha excitação. Já estava agarrando meu torso, o apertou com mais força e me beijou na boca.

Sua saliva era quente e de um gosto bem mais forte do que qualquer boca que já beijei; sua carne, deliciosa ao toque e seu cheiro de mulher, que ficava mais forte, avassalador. Eu poderia me perder naquelas sensações. Mas algo me ocorreu e segurei-lhe os braços, impedindo que aquilo continuasse: “Que é isso? E quem está morrendo, Vanessa?”

“Cátia. Me perdoe… eu... eu fiz besteira ..” mas balançou a cabeça como se estivesse dizendo bobagens, e consertou: “quer dizer, eu acho que ela está muito mal, eu sonhei com isso.”

“Não quer dizer nada. Ela está no hospital, e bem. Senão eu teria sido avisado. E, Vanessa…”

“Mas eu não suporto. E será que fiz errado em passar aqui? Preciso de apoio. E também, não consigo me concentrar com…” interrompeu o próprio discurso de novo. “Me traz um copo d'água? Não tou muito bem.”

Assenti, meio aliviado de ter alguns instantes para avaliar a situação, enquanto descia para pegar a água. “Traga dois copos!” gritou ela do quarto enquanto eu descia as escadas.

Peguei logo uma jarra e subi de volta, rápido; nem consegui, também, me concentrar no que estava de fato acontecendo. Era como se eu fosse um hiperativo.

“Minha família é espírita,” ela foi explicando assim que entrei de volta no quarto, “e eles dizem que beber água fluidificada faz bem quando a gente está assim, abalada. Então vamos nos concentrar um pouquinho, eu não quero rezar, nem sei rezar direito, mas dizem que a água se energiza e se bebemos, faz bem, acalma, sei lá.”

Achava aquilo uma tolice, mas concordei por talvez poder acalmá-la. Por outro lado, a situação era meio… broxante, para usar a palavra exata. Eu havia estado extremamente excitado poucos minutos atrás e agora ia “fluidificar” água junto com aquela garota.

Ficamos um tempo parados, sentados no chão do quarto, a luz da lua caindo sobre o aposento mergulhado em penumbra. Até fechei os olhos, entrando na onda dela, para melhor me “concentrar”. Logo depois que fiz isso, ela disse, “Vamos beber, então.”

Tomei a bebida a goles sôfregos, queria acabar logo com aquilo. Ela também bebeu o copo dela bem rápido, e não contou conversa, me agarrando de novo. Ela não saiba o que queria, afinal de contas!

Nos abraçamos e ela ficou por cima de mim, ávida, feroz. Acabamos tirando a roupa e começamos a fazer sexo ali mesmo, no chão. Parecia tudo muito bem (eu havia esquecido completamente a existência de minha mulher e de minha filha hospitalada), o cheiro dela invadia todo o quarto, era como se fosse uma nuvem invisível me afetando, me atiçando… até que ela começou a se empolgar demais.

Os dois sentados um diante do outro, as pernas em tesoura na penetração, ela arranhava minhas costas com uma força além de qualquer outra mulher que havia me arranhado antes. Era dolorido e as unhas pareciam mais garras que outra coisa. Além disso, eu estava começando a me sentir esquisito: me mexia dentro dela com uma velocidade anormal, como se fosse um animal selvagem, e minha vista começava a… borbulhar na minha frente, distorcendo o que eu enxergava. Os cheiros começavam a ficar mais fortes, além do cheiro dela, eu sentia o cheiro de madeira da chuva da tarde, que havia subido pelas casas há várias horas; o cheiro do perfume de minha mulher, que estava bem longe dela, mas ficou parada pondo perfume na porta do meu quarto, enquanto conversava comigo, umas duas horas antes; o cheiro de comida vindo da geladeira fechada. O cheiro da luz da lua entrando no quarto. O cheiro de minha mente estalando, o cheiro da fome de Vanessa.

Ela me derrubou no chão, grunhindo: “Sente o sangue ferver? Sente tudo mais forte? MAIS VIVO?” Suas formas pareciam animalescas, diante de mim. O que eu enxergava era uma mulher e um bicho ao mesmo tempo, sua vagina era quente e apertada, apertava demais, ela tinha escamas por todo o corpo e seus olhos brilhavam com uma luz muito amarela, vívida. A língua (parecia bífida) vibrava para fora da boca, que se escancarava ao gritar, gemer, num ângulo impossível para uma mandíbula humana; como se ela fosse uma cobra prestes a engolir um touro.

E eu me sentia sendo engolido.

Logo, isso se provou literal. Ela avançou sobre meu ombro, me segurando com toda força, e eu não conseguia reagir, ainda preso sob ela e entre suas pernas. Me sentia como se estivesse drogado. E ela me mordeu o ombro; não só mordeu, mastigou e arrancou pedaços do meu ombro. Senti-me devorado vivo e desfaleci de dor, não sem antes as alucinações piorarem e eu enxergar Vanessa tornando-se uma serpente gigante, enroscando-se em volta de meu corpo, me estrangulando…

Acordei no chão, com uma dor de cabeça incrível. Já era de manhã e a luz do sol entrava, iluminando tudo de modo tênue. A porta do quarto estava fechada e dava para enxergar a chave virada nela, deixando-a trancada. Droga, a minha mulher… onde será que ela havia dormido?

Com a cabeça rodando, examinei meu corpo e vi que havia, sim, uma marca no ombro – mas podia ser muito bem uma marca de uma queda, eu poderia ter caído da cama… parecia uma mordida, e ao mesmo tempo não parecia. O ferimento ardia e eu sentia quase como se ele estivesse se fechando.



ME PEGUEI BEIJANDO A MOÇA que parecia Vanessa. Bom, agora eu não tinha satisfações para dar à minha mulher: ela havia me deixado, depois da morte de Cátia. Sim, porque Cátia havia, sim, morrido no hospital naquela mesma noite; e minha esposa havia esmurrado a porta do nosso quarto, tentando me avisar, mas eu juro que não ouvi nada, naquele sonho estranho com Vanessa.

O salão havia se convertido em uma quase orgia. Ainda bem que a igreja não era do tipo de portas abertas, aceitando os fiéis ou curiosos que passam pela rua. Não, a igreja – aquela filial da igreja – ficava num antigo cinema, mas a assembleia acontecia mais para dentro, na sala de cinema propriamente dita. Não vi cenas de sexo propriamente dito, mas era tudo como uma bacanália, em vez de simples bacanal: uma celebração dionisíaca, vários cantavam hinos em meio à liberação.

Então, de maneira quase orquestrada, simultânea, todos começaram a louvar a Deus num hino, pulando e erguendo os braços. O pastor Neemias reapareceu no palco e voltou a bradar em línguas… só que, desta vez – e eu já estava bastante alto, como se estivesse alcoolizado, e olha que fazia uns dois dias que não bebia – “entendi” o que ele gritava, era também um hino, mais ou menos assim (aquelas palavras ficaram gravadas a fogo em minha mente, pois era apenas em minha própria mente que eu as compreendia):

Ave, Senhor Tsathoggua, Pai da Noite!
Glória, ó Antigo, Primogênito da Entidade Exterior!
Salve, Aquele Que Era Antigo Além do Imemorável
Quando as Estrelas Geraram o Grande Cthulhu!
Todo Poder ao Rastejante Ancestral, sobre os lugares podres de Mu!
Iä! Iä! G'noth-ykagga-ha!
Iä, Iä, Tsathoggua!

Depois que pronunciou aquelas frases (algumas das palavras eram percebidas como pura insensatez, como esse “Tsathoggua”), os fiéis foram se dispersando em fileiras mais ou menos organizadas, saindo do salão de assembleia e dirigindo-se às saídas; mas nem todos.

Fiquei meio sem jeito com tudo aquilo (sei que andava mal da cabeça e do coração, nos últimos tempos, porém aquilo superava muito, em estranheza, o que eu esperava) e já ia dando mostras de também ir embora, sem chegar a falar de fato com ninguém, quando senti uma mão no meu ombro.

Era o Pastor Simão.

Ele tinha um pouco de mau hálito, disfarçado pelo uso de balas de canela (dava para perceber com nitidez). “Você parece não pertencer ao rebanho, irmão” disse o pastor.

“É a primeira vez que venho aqui, e…”

Ele riu. “Não era disso que eu estava falando.” Seus olhos brilhavam, intensos, meio que me sondando. Ficou alguns segundos esperando que eu disse algo, talvez, e completou: “O Pastor Neemias quer falar com você.”

Como assim? Não estava entendendo nada, será que alguém do bar falara dos problemas com esse pastor? Só fiz assentir e Neemias fez um gesto para que o seguisse. No meio do caminho, algumas pessoas desativavam os aparelhos de som, enquanto outras, bem menos numerosas, se encaminhavam para a parte ainda mais interna da igreja.

E foi para lá que nos dirigimos. Chegando numa sala mais ou menos ampla, embora bem menor que o salão, cheia de cadeiras e (o que era estranho para uma igreja) divãs, ou sofás de reclinar, parecidos com aqueles dos filmes romanos. Havia ali também uma espécie de púlpito.

E, recostado sobre ele, de jeito quase displicente, o Pastor Neemias, cofiando a barba grisalha. Era um homem robusto, apesar da idade talvez já acima da casa dos cinquenta.

“De onde veio, você, irmão?” perguntou ele, ríspido, entrando em choque com a simpatia que senti por ele, que viera ali quase disposto a contar tudo dos últimos meses, como se ali fosse um confessionário católico. Da morte da minha filha, dos sonhos estranhos, das ideias despropositadas, da fim do meu casamento, do sumiço de Vanessa. Talvez eu viera no lugar errado. Talvez não.

“Me recomendaram esta igreja, eu ando meio angustiado, e…”

“Corta essa conversa de crente. Dá pra sentir o seu cheiro, você achava que não?” Despegou-se do púlpito e veio avançando na minha direção.

“Do que é que você está falando?” Apreensivo, olhei para os lados: eu, os dois pastores e mais umas três pessoas, incluindo aí duas mulheres. Vestidos do jeito padrão para um grupo de crentes, mas com uma postura corporal totalmente distinta. Diabos, um deles parecia estar mostrando os dentes para mim!

Aquilo, mais Neemias se aproximando como se fosse fazer círculos ao meu redor, me despertou uma espécie de reação automática. Minha postura ficou um pouco mais curvada, os membros, tensos, pronto para responder com violência, se fosse necessário.

“Isso aqui é nosso território,” sussurrou estranhamente aquele que se dizia Pastor Simão. “Não acha que fez mal ir entrando sem ter avisado antes?”

“Não faço ideia do que estão falando, mesmo,” repeti. “Para mim, isto aqui era apenas uma igreja… normal.” Esta última palavra demorou um pouco para sair; eu mesmo sabia que estava mentindo, nunca ouvira falar da Igreja da Libertação de Deus como igual às outras. Apesar de nunca ter me chegado notícia de orgias, antes.

A cara que Neemias fazia era de raiva e confusão. E eu, se não estava totalmente assustado, estava muito apreensivo. “Que é isso de território?” perguntei, dando um passo em direção à porta por onde havia entrado.

Mas fui impedido de me movimentar com mais liberdade, porque o homem que mostrava os dentes para mim, nos cantos da sala, avançou também e cortou minha saída. Talvez tivesse agido contra mim, se uma das mulheres não segurasse seu pulso, vindo rápida na direção dele, e falasse alto, para todos:

“Esperem! Ele pode ser um apagado… um novato que não sabe o que é. A Garra anda provocando muitos desses, ouvi dizer.”

“Mas o cheiro dele é diferente,” interrompeu Simão. “Tem alguma coisa diferente nele, é como se fosse um licantropo há anos!” Licantropo? Aquela palavra estranha me deixou mais confuso, onde já a houvia encontrado…?

“Não importa” falou o homem de dentes expostos – o cheiro dele também era forte, como de um cachorro que não tomava banho; olhando também para a mulher que havia intercedido, percebi que ela tinha um cheiro insinuante e forte, e que, na verdade, a linguagem corporal de todos eles se parecia com a de animais. “Se é um novato, vai ter que se submeter a nós.”

Submeter? Eu começava a ficar ainda mais nervoso.

“Calma,” interveio Neemias, agora um pouco menos tenso. “Vamos lá, irmão. Faça o que veio fazer aqui, ou o que disse que veio fazer aqui. Conte seus problemas.”

Os outros relaxaram um pouco a postura de alarma, era como se Neemias fosse o chefe deles, incondicional. Então desabafei, contei tudo que esperava contar, dos sonhos, da minha filha, de Vanessa (esquisito que quando mencionei esse nome e o incidente, alguns deles ergueram as sobrancelhas), das alucinações … nesse ponto, perguntei, “Quem é Tsathoggua?”

“Ah, irmão!” reagiu Neemias. “Então você é digno de saber a verdade do nome de nossa igreja. É um duplo sentido, sabe… a Libertação é a Libertação de Deus, você veio aqui se libertar do próprio Deus, porque o Deus que aqui cultuamos não é esse deus fraco que se faz de forte, que os homens conhecem mal e que procuram por medo; veneramos um deus como nós. Como eu e você. Ele é um guia... Tsathoggua. Um ser amorfo, divino, como você e eu.”

“Como eu e você?!?”

“Sim, mas acho que uma imagem vale mais que mil palavras. Chegue aqui, vamos até o porão. Vai ter que confiar em mim, e sabe que não tem muita escolha. Mas não te desejo mal, e você sabe disso, também. Não é?” De novo, aquela aura de simpatia e confiança, mesmo no meio de estranhas conversas e algaravias em línguas desconhecidas.



IV

DESCEMOS AS ESCADAS SUJAS que se escondiam atrás de uma porta discreta. Eu ia ao lado de Neemias, enquanto Simão e os outros (que disseram se chamar Teodoro, Liziane e Marluce) vinham logo atrás. Por um instante pensei que ia encontrar um tipo de calabouço iluminado por tochas, ou então um local ritualizado, cheio de velas, mas não era nada disso; no caminho alguém apertou uma tecla e luzes fluorescentes encheram o pavimento inferior. Foi então, ainda no alto da escada, que eu a vi.

Aquela coisa. O cheiro dela era ainda mais forte que o dos outros, extremamente familiar e ao mesmo tempo surpreendente. Uma mulher (via-se pelo contorno dos seios, de bicos muito pontudos, e pelos quadris arredondados) coberta de escamas muito grossas, negras… e a cabeça era totalmente ofídica, com um capelo de naja, no lugar dos cabelos. Ela estava nua, acorrentada a uma das paredes daquele… deveria chamar de dormitório? Estava cheio de camas de campanha.

Ao nos ver, o monstro começou a se debater e berrar. “A porta lá em cima está bem fechada?” perguntou Simão a uma das mulheres, que assentiu afirmativa.

“O… o que é isso? Será que estou sonhando, de novo?”

Neemias foi me empurrando pelas escadas e falou, na voz uma seriedade forçada contrastando com o rosto alegre e excitado: “Não a reconhece? É ela. Aquela que matou sua filha.”

“Matou minha filha, como assim? Minha filha morreu de infecção hospitalar!”

“Não exatamente. Sua filha só estava naquelas condições, para começar, por causa de… Vanessa.” Aquela era Vanessa? Percebi então como aquele ser se parecia com as formas do corpo da moça que eu só havia visto nua uma vez, em sonho; e que parecia não muito sonho, agora; e foi então que me lembrei de como o sonho terminou…

“Nós sabíamos da sua história, indiretamente,” falou Simão, mais uma vez num sussurro, mais um sibilo agora, “por ela, que era parte do nosso bando. Agora está aí, de castigo. Foi ela que apresentou a droga Garra para sua filha; foi ela que tentou reanimar sua filha no hospital, e falhou; foi ela que, depois de falhar, foi se consolar contigo, e acabou fazendo de você… um aperitivo. Já fez isso antes, matou um tal Caio, o melhor amigo dela… Mas ela não imaginava que ao… temperar você, acabasse te despertando.”

“Bando? Tempero?” Então, me veio o choque. Ela havia me drogado, posto algo na água, enquanto eu me concentrava, naquela noite terrível. “Mas porque ela fez isso???” perguntei desesperado.

“Porque ela gosta do tempero da droga na carne humana… a GARRA que desperta ALGO naqueles destinados, a Garra na carne humana… coisa que você também vai aprender a gostar,” respondeu exultante Neemias, me segurando pelo braço, “porque você é um de nós!”

A coisa serpentina diante de nós começou a se debater quando Neemias se transformou, seu agarrão no meu braço tornando-se cinco garras me prendendo com força. Era um monstro peludo, que ao crescer rasgou o paletó de Neemias, postura curvada e cabeça como a de um gigantesco chacal ou lobo.

“ENTÃO,” grunhiu Neemias, “JÁ SABE AGORA O QUE VOCÊ É?”

Os sonhos. Os sonhos que eu havia tido naqueles últimos meses, me vieram como um baque sobre a cabeça. A vontade de matar era genuína, porque eu era um monstro. Não sabia se tinha mesmo estripado inocentes daquela forma que me lembrava, nos sonhos, mas era tudo vividamente real. Eu corria pelas ruas da cidade, livre, caçava e matava e devorava.

Os outros assumiam formas animalescas menos evidentes, mas mesmo assim assustadoras: Simão exibia escamas de um mosqueado verde-amarelado, e olhos tão serpentinos quanto o de Vanessa acorrentada; Teodoro tinha os braços muito peludos e dentes muito afiados, e estava barbado como não era poucos minutos antes; Marluce exibia olhos azuis, de um azul que não era humano, e garras como as de um gato; enquanto Liziane era de todos a mais assustadora, com a pele viscosa e repugnante, coberta de ventosas, os braços flexíveis como tentáculos.

E o mais estranho, para mim, era que eu sentia muito medo, mas o medo não me dominava. Era como se eu já estivesse acostumado com aquilo – e com todas aquelas metamorfoses, eu seria o único humano ali no porão… se não fosse a reação que me possuiu: minha pele coçava como se estivesse alérgica a alguma coisa no ar, e aquilo piorou chegando a arder, a queimar; o tempo parecia parar enquanto aqueles animais me rodeavam e eu me aproximava da acorrentada, presa a grilhões de cor muito prateada.

Então vieram as alucinações – os cheiros muito mais fortes, a umidade do ar parecia mais espessa, e se mexer, reagindo aos movimentos do bando de monstros; haviam zumbidos, silvos e estalos por toda parte; um ruído surdo preenchia minha cabeça… e naquele instante interminável, vi a luminescência, aquele halo hediondo e psicodélico que havia enxergado na lua, na noite em que Vanessa me havia visitado.

O halo envolvia as correntes de prata que prendiam a moça, monstro, parente, fêmea, consorte, estranha e familiar, favorita e odiada, prostituta e santa, deusa monstro. E eu sabia que as devia tocar: para tocar na pele da minha deusa e amante, devia estraçalhar os grilhões… era a mensagem que me vinha à mente, tão verdadeira quanto o cântico em línguas, declamado por Neemias.

“É A SUA CHANCE, “bradou Neemias, “PODE SE VINGAR DELA, VOU TER O MAIOR PRAZER DE ASSISTIR, É UMA PUTA TRAIDORA.”

“BANDO… PORRA NENHUMA!!!” Num só movimento, agarrei as correntes de prata e as puxei, quebrando o pino que as prendia na parede, e sacudi aquele excesso de grilhões sobre o rosto – não, o focinho – de Neemias. Meus músculos pulsavam com uma sensação de poder nunca antes sentida, e punir o pastor só aumentava o prazer daquela sensação de poder. Eu não tinha mais nada a perder na vida, a não ser Vanessa.

“Como assim ele é imune à prata???” gritou apavorada, aquela coisa cheia de ventosas e tentáculos. Tinha muita razão para estar assustada; eu mesmo me aterrorizava ao perceber que minha pele era agora um couro espesso, cheio de escamas e espinhos, rasgando minha camisa.

Os três mais fracos estavam como que paralisados frente à cena. A prata, me veio a ideia no fundo da mente. Estilhacei o anel do braço direito de Vanessa, lhe dando mais liberdade de ação e a libertando, também, da dor da prata. Enquanto eu vibrava novamente o emaranhado de correntes na pele do lobisomem – sim, era isto que ele era, sem a menor dúvida, agora – dei tempo suficiente para que Vanessa superasse, um esforço tremendo, a dor e quebrasse o anel de prata do outro pulso. Coisa que nunca mais conseguirá repetir na vida.

A cabeça animalesca de Neemias estava banhada de sangue e suas feridas eram graves. Ele ainda tentou me atingir com suas garras, mas consegui me esquivar da maioria dos golpes e só um deles me acertou – e o ferimento pouco me atrapalhou, começando a sarar quase que no mesmo instante.

Aproveitei um momento em que Neemias se contorceu de dor, e o instinto de fuga assumiu: empurrei Vanessa na direção da escada, e corremos. Eles não ousaram nos seguir, os três devem ter tentado cuidar de seu… líder, pastor, o que seja. E que o tal deus amorfo deles se fodesse.

Quando ultrapassamos a porta que separava o porão do fundo da igreja no nível térreo, consegui ouvir a voz sussurrante de Simão, “É o Dragão de Yig… o monstro que devora a lua... estamos acabados…”

Na câmara onde haviam aqueles divãs todos se encontrava também um grande espelho na parede, como numa sala de dança ou ensaio teatral. E eu me vi. Um monstro reptiliano, de garras malignas empunhando correntes de prata, cheio de escamas e espinhos da cor de um azul quase negro, a cabeça deformada, draconiana, os olhos de uma cor mortal e prateada.

As formas de Vanessa começaram a suavizar e seu rosto assumiu as feições femininas que eu conhecia, “Rápido! Não temos tempo pra ficar se olhando no espelho, tio!” Puxou o lençol que cobria um dos sofás e cobriu sua nudez. Minha vontade era de a possuir ali, de novo, como naquela noite, dessa vez, seria tão mais pleno…

Os olhos de Vanessa se estreitaram e percebi a serpente nela se manifestando, sibilando: “NÃO. AGORA NÃO É O MOMENTO. Vamos sair daqui,” sua voz foi voltando ao normal.

Naquela noite corremos pelas ruas como dois malucos perdidos num labirinto, depois de ter quebrado uma janela dos fundos da igreja. Em um certo momento paramos e ficamos abraçados como se fôssemos dois indigentes na noite fria e enluarada, marido e mulher, suados e ofegantes, ela muito pior que eu, as minhas roupas rasgadas e ela envolta num cobertor.

Passou um anônimo na rua, sentiu pena, meteu a mão no bolso e foi tirando umas moedas, dizendo, “Tá precisando de uma pratinha pra alimentar sua esposa, amigão?”

“Prata?” respondi, finalmente rindo depois de tanto tempo, assustando o transeunte. “Não, pode deixar… já tenho toda a prata que preciso...”

No meu sorriso brilhava a luz da lua; nos meus olhos prateados, a certeza da libertação.














LIBERTAÇÃO foi escrito em fevereiro de 2011 e reescrita em julho de 2012 para a coletânea SIMETRIA MACABRA: CRÔNICAS DO MYTHOS DE CTHULHU. O conto original, além de reescrito, foi adicionado a outra história mais curta,Escombros e Uivos,como a primeira parte das quatro em que o conto final foi dividido.
O cântico em itálico é da autoria de HP Lovecraft, homenageando Tsathoggua, criação de Clark Ashton Smith.