quarta-feira, 25 de julho de 2012

O HORROR DO PRÉDIO VAZIO


Arthur Ferreira Jr.'.







“A senhora tem certeza de que não quer vender o apartamento? A oferta é muito boa.” O corretor segurava a caneta em uma das mãos, tentando parecer resoluto. “O valor que a senhora ganharia é quase o dobro do que este imóvel realmente vale...”


“Não, não,” expliquei pela segunda vez, pondo um pouco mais de veemência na voz, “eu não estou exagerando quando disse que nasci nesse apartamento. Minha mãe deu a luz antes do tempo, e foi tudo tão rápido que eu nasci aí nesse sofá que o senhor está sentando...” O corretor passou a caneta para a outra mão, um tanto perturbado, talvez pelo comentário, talvez pela perda visível de um bom negócio.


Bom negócio ou não, não estava disposta a sair dali. Nunca fui uma pessoa particularmente ambiciosa – para mim, ter o meu cantinho e meus meios de sobrevivência já bastava. Minhas amigas falavam que eu pensava como se fosse uma hippie, que eu devia namorar com homens mais velhos, ou de situação financeira mais definida... mas eu continuava apenas vivendo minha vida e sem colecionar grandes culpas por isso.


Infelizmente, não ter aceito aquela proposta, naquele momento, trouxe o maior remorso que já senti na vida, e não só isso: pesadelos recorrentes e envelhecimento precoce. E a revelação de um segredo que fez com que tudo o mais perdesse ânimo e significado.






Pode parecer estranho que, mesmo após confessar que não tenho ambições muito fortes, diga que trabalhe com dinheiro. Eu era contadora para um escritório terceirizado das Indústrias Carcosa, que ficava bem próximo do apartamento onde eu morava, no bairro de Vila dos Caraíbas. Pode-se dizer que é um bairro de classe média decadente de Nova Portal, cidade onde morei a vida toda, mas que depois de tudo que aconteceu, planejo deixar em pouco tempo.


O prédio era antigo, mas não tão antigo que estivesse caindo aos pedaços. Eu realmente gostava dali. Meu apartamento, no terceiro andar, era único no sentido em que tinha uma varanda – por alguma razão excêntrica do dono anterior, que era um amigo de meu falecido pai. Naquela varanda eu colocava uma mesinha grande o suficiente para que duas pessoas jantassem, sentadas em pufes bem confortáveis. Quase sempre, os começos de meus relacionamentos envolviam encontros naquela varandinha; e os finais sempre incluíam discussões no quartinho que dava para o poço central do edifício. Naquele quartinho eu também costumava me isolar para fazer poemas – literatura ruim que tenho vergonha de mostrar aos outros, mas escrevê-los é um modo de desabafo. Ali também ficavam meu diário e uns cadernos velhos... numa escrivaninha antiga, do lado de uma mesa pequena, e uma poltrona. O que é esquisito é que, como eu disse, esse lugarzinho quase secreto sempre acabava, com o vai e vem das discussões e brigas, invadido pelo casal – eu e meu namorado, qualquer que fosse ele num dado momento – e ali tudo terminava.


Hoje olho no espelho e enxergo linhas de expressão bem marcadas ao redor de meus olhos, e rugas quase macilentas decoram minha testa. Mas naqueles anos, minha pele mulata era límpida e atraente, meus olhos tinham o brilho da vida e meu rosto, com seu sorriso de covinhas, atraía a atenção imediata dos rapazes. Eu era romântica e me atirava de cabeça quando me apaixonava; há sete anos eu era assim, hoje não tenho energia para conversar, e mais ouço e escrevo, do que falo e declaro minhas intenções. Assim, mesmo depois de vários relacionamentos, eu conseguia me renovar por dentro, e partir para outra. E nenhum deles foi definitivo, embora houvesse a ilusão de que seriam... hoje, não tenho ilusões sequer de que consigo iniciar alguma coisa.


Eu estava num desses intervalos entre namoros, e tinha decidido me dedicar mais ao trabalho do que a outra coisa. Saía menos. Passava mais tempo em casa analisando balancetes, e fumando sozinha na varanda enquanto ouvia jazz e chorinho... escrevendo um ou outro poema nos cadernos do quartinho que dava para o fosso do prédio.


Mais ou menos na mesma época em que me foi feita a oferta de compra do apartamento, comecei a ter crises de inspiração, e vinha o chamado “branco,” quando tentava escrever algo. Quer dizer, o problema não era a inspiração, era a expiração, a expressão: eu sentia coisas, tinha ideias, formulava conceitos, mas não conseguia pôr nada no papel. Assim que eu sentava no local de costume, a poltrona rangia e eu sentia um frio dentro da mente – não conseguia escrever. Algumas vezes cochilei recostada, e acordava sentindo uns calafrios esquisitos que nunca haviam surgido antes – vinham até com um toque de náusea, me fazendo levantar de imediato para ir ao banheiro e escovar os dentes.


Avaliava que devia ser o estresse. O escritório me fazia trazer cada vez mais trabalho para casa, e os cálculos eram cada vez mais complicados, o estouro de uma bolha no mercado imobiliário havia afetado os negócios da Carcosa e os analistas financeiros tentavam contornar a situação. Eu lia matérias sobre o caso e me admirava com o esoterismo, o quase transcendentalismo daquelas especulações, que haviam trazido o setor próximo ao colapso, em Novo Portal e na região que a cidade dominava. Muita gente desempregada, e parece que até mesmo o número de sem-teto havia aumentado.


Meu velho prédio não deixou de ser afetado. Os apartamentos estavam sendo comprados por um preço mais alto que o normal e a maior parte das pessoas, vendo a situação, aproveitava para vender o imóvel antigo. Chegou a um ponto em que só haviam três apartamentos ocupados: o meu; o 301, de um tradutor divorciado chamado Fabrício Montalvão; e o 104, de uma velhinha que morava apenas com seus gatos.


Uma tarde, eu quase tropecei ao voltar para casa, batendo com o pé em sapato de salto alto em alguma coisa que praticamente saíra voando pelo meu corredor. Da esquina vi o rabo de um dos gatos brancos de dona Bibiana; e meio irritada, fui pedir a ela que mantivesse os animais dentro de casa, aquilo poderia provocar um acidente.


A velhinha abriu a porta e, de cara, vi que o apartamento estava cheio de caixas largadas pela sala e por outros cômodos. A palavra “mudança” estava estampada na cena e também no rosto de dona Bibiana, que pediu desculpas pelo incômodo causado, perguntou se eu não queria tomar um cafezinho, e comentou que no dia seguinte o caminhão chegava para pegar as coisas dela. Os gatos deviam estar assustados com a desarrumação de tudo, foi o que ela me disse.


Já em casa, sob a ducha, pensei no que diabos estava acontecendo. Havia feito umas poucas investigações e sabia que cada apartamento havia sido comprado por uma pessoa diferente, entre físicas e jurídicas; não podia ser alguma empresa tentando construir um novo empreendimento no terreno do prédio, até porque a conjuntura do mercado naquele momento não era propícia. Fumei um pouco de erva na varanda – agora eu não tinha satisfações a dar aos vizinhos de janela, e, mais relaxada, fui até o quartinho tentar extravasar minhas inquietações no papel.


Tão logo me recostei na poltrona, não pude deixar de ouvir uma conversa que se infiltrava pelas paredes e pelo fosso do prédio. Era o Fabrício, no lado oposto do fosso – sua voz era nítida, e ele parecia estar falando ao telefone, porque era a única voz ali. Mas, por reconhecível que fosse, a voz não parecia dizer nada inteligível – era uma língua estranha, com alguns sons guturais. A cadência de Fabrício – quase recitando aquelas palavras desconhecidas, num ritmo que, prestando atenção, fantasiei ser uma poesia – me provocou um calafrio muito similar àquele que sofria ao acordar dos cochilos na poltrona, e flagrei-me apavorada por um instante.


A declamação continuou e eu levantei, quase pensando em chegar pelo reduzido basculhante e gritar um pedido de silêncio – mas o calafrio, a estranheza da situação e o fato de que eu já havia ido reclamar algo com minha outra única vizinha, me impediram. Percebi que um barulho como de arrastões por um piso de tacos acompanhava o poema – se é que era poema. Ergui-me na ponta dos pés e espiei, o basculhante da casa dele mostrava só uma escuridão completa; não dava para achar que houvesse qualquer luz acesa naquele apartamento, salvo dentro de algum outro cômodo totalmente fechado.


Aos meus olhos, a bizarria da situação havia aumentado, o pânico ameaçou voltar, mas eu engoli em seco e preferi sair do quartinho, indo direto para a cama, onde me enfiei sob as cobertas. Demorei mais do que esperava para dormir, mas acabei conciliando o sono; e enquanto tentava dormir fiquei a refletir sobre Fabrício – um cara já chegando na casa dos quarenta, antes sua casa andava cheio de amigos, mas estes foram rareando e sumindo, ao ponto dele deixar de cumprimentar os vizinhos e passar dias sem sair de casa, trabalhando, eu imaginava. Sabia que ele era tradutor de inglês, italiano, e... grego, sabe-se lá por que razão; então aquilo que eu ouvira devia ser grego. Talvez ele estivesse lendo alguma coisa em voz alta, pensei... mas por que então estava tudo tão escuro...?


Pensando nas trevas do apartamento de Fabrício, adormeci.






Três dias depois, ignorei a ducha costumeira e fui direto para a poltrona, sentar e chorar um pouco. Não conseguia me deitar, por alguma razão as costas me doíam, e sentia uma tontura, que melhorava se eu estivesse sentada. Chorava porque estava, na prática, desempregada. Eu vinha do subúrbio de Grotão, onde fora entregar pessoalmente uns documentos a um funcionário graduado da Carcosa – as Indústrias mantinham uma refinaria por aquelas bandas, um bairro ainda mais decadente que o meu, embora ainda cheio de casas antigas – e depois disso, no trânsito, pelo celular, um colega me alertou para uma série de mudanças que estavam ocorrendo no escritório, por baixo dos panos; e que o escritório seria desmontado em muito, mas muito breve.


Eu havia me acostumado àquela rotina e não sabia – com a crise da época – quando conseguiria de novo um emprego; era competente, mas não um prodígio... não o suficiente para me destacar onde a seleção natural do mundo financeiro estalava seu chicote. E eu sentia vontade de chorar de frustração... mas não conseguia.


Sentada na poltrona do quartinho, ouvi o som distinto de um miado, bem ao longe. Parecia vir do fundo do fosso; será que a velha havia deixado algum gato para trás? Pelo basculhante, vi uma leve fosforescência lá embaixo. Quem teria deixado as luzes acesas e um gato preso na casa de força? Mas não lembro de ter visto nenhum felino pelas escadas do prédio vazio... prédio vazio, pensei. Não estava tão vazio. Eu precisava esquecer meu problema por um tempo, e visitar meu vizinho me pareceu, num estalo de ideia, a melhor opção. Ele também deveria estar solitário... e quem sabe apreciasse minha companhia, nem que fosse para jogar conversa fora, mesmo... e o gato lá embaixo, repetindo seu miado sofrido pela terceira vez, era uma desculpa perfeita para quebrar o gelo.


Na verdade, antes não havia gelo – antes da mudança gradual de comportamento de Fabrício, eles costumavam bater papo na portaria do prédio, e havia até um clima de flerte – sempre depois desarmado por um novo namorado meu, ou por um dos amigos que o visitava. O terceiro miado do gato, lúgubre a ponto de me causar aquele horrendo calafrio ao qual começava a me acostumar, me fez decidir de vez. Saí do quartinho, tomei a ducha que deveria ter tomado antes – o mal-estar que eu sentia passou, levada pela água que escorria pelo ralo – uma leve borrifada de perfume cítrico, uma roupinha casual mas elegante e pronto: podia pedir ajuda ao vizinho para salvar o gato do fundo do poço, que ia até o subterrâneo do prédio, onde havia a casa de força. Quem sabe eu conseguiria resgatá-lo de sua solidão e transformá-lo de volta naquele trintão charmoso, que sorria segurando uma caneca de café, quase piscando o olho...?


Quando bati à porta de Fabrício, minhas intenções já haviam passado de afogar minhas mágoas com ele para fazer com que ele afogasse as dele comigo – não obstante ele ter entrado naquela decadência social já há mais de um ano, e mesmo assim eu não tê-lo procurado. Eu era jovem, e jovens encontram as melhores explicações para usar as outras pessoas. Não tendo resposta ao meu toque, bati outra vez. Olhei o visor do celular: já estava ali há quase cinco minutos. Talvez estivesse dormindo – mas era ainda muito cedo, e no banho não poderia estar; eu ouviria o barulho do chuveiro. Encostei o ouvido à porta – minha única amiga nos dias de hoje diz sempre que, quando eu quero alguma coisa, não sossego – e tomei um susto, porque de repente Fabrício começou a falar lá dentro, provavelmente estava mais para dentro do apartamento e não na sala, mas falava alto o suficiente para que, dessa vez, eu entendesse o seu monólogo:

“Sabe o que a gente faz com um pé gangrenado? Amputa. Até a Bíblia fala disso, quando diz pra gente atirar longe o olho esquerdo, a mão esquerda. Esquerdo é só uma palavra em código pra maculado. O canhoto era tido como coisa do diabo. Então, se você não der um fim no seu apartamento, todo o prédio vai estar podre... podre como a escuridão batráquia que invade o mundo! Você tem que se salvar, Bartira! O fogo purifica. Queime o apartamento!... Queime o apartamento!!!”


Dessa vez não achei que ele estivesse recitando poemas gregos, ou ao telefone. Especialmente porque meu nome é Bartira Maldonado!!!


A voz de Fabrício se aproximava da porta, e continuava, aflita: “O mundo está maculado, sabe. Cheio de pequeninas conexões, que os desatentos não notam. Mas, pra mim, é tudo tão claro! Eu consigo enxergar. Lembra daquela tonturinha que você sentiu quando saltou do carro, ontem...? Pareceu apagar por apenas alguns segundos... pois é, antes disso, você passou pela estrada de Grotão pra Novo Portal; havia acontecido um acidente, muitas vítimas, e o condutor do coletivo clandestino disse que bateu com a carreta porque uma “escuridão” havia entrado em sua cabeça. Tudo muito rápido. Exatamente como você, entende? E as rodas direitas do seu carro estão manchadas com o sangue das vítimas... com o sangue do próprio motorista. Você saboreou um pequeno aperitivo daquela escuridão, ela veio rodando com você por quilômetros, viajou com o sangue e o pó da estrada. Quando você se levantou, e as trevas roçaram de leve a sua perna. A escuridão se infiltra, ela entra em todos os cantos, vaza pelos poros do mundo, você não consegue sentir?!?”


Neste ponto, não aguentei mais – minha vontade se dividia entre o pânico de sair correndo para longe daquele louco, ou esmurrar a porta, desesperada, e exigir uma explicação. Mas não fiz nem uma coisa nem outra: dei dois passos para trás e escorreguei pela parede, um suor frio gotejando na testa. Sentada naquele chão gelado, percebi que Fabrício havia finalmente se calado – talvez houvesse percebido que eu estava ali; mas se só havia notado naquele instante, por que estava já falando comigo...? Foi então que uma coceira provocou meu braço, e depois as maçãs do rosto, espalhando-se por vários pontos isolados do meu corpo – era como se eu tivesse, com a maior rapidez, manifestado alguma alergia inesperada. Devia ser o estresse, racionalizei. Como o silêncio lá dentro continuasse, decidi não procurar explicação alguma naquele momento. Mas não tinha forças para levantar, a náusea havia voltado, forte... mas não o suficiente para vomitar. Na verdade, era como se eu estivesse constipada... entupida. Maculada... não era mácula a expressão usada por Fabrício?


Fiquei cerca de vinte minutos ali, esgotada pelo choque, até conseguir forças para levantar e voltar ao meu próprio apartamento. Nesse ínterim, nenhum ruído no 301 de Fabrício; eu preferi tentar descobrir que conversa toda era aquela no dia seguinte, e, segurando-me nas paredes, andei pé ante pé no corredor, para evitar ser ouvida por ele. Ao entrar na minha casa, a vontade era bater a porta num estrondo; mas não fiz isso e, na verdade, esse desejo se esgotou quando lembrei das palavras daquele perturbado – meu apartamento estava podre, e eu precisava queimá-lo...


Pensei que meus sonhos naquela noite fossem aprofundar-se em pesadelos; mas não sonhei coisa alguma, no outro dia acordei cansada, esgotada.






Tentei esquecer o ocorrido, e na semana seguinte lidei com a já sabida e inevitável demissão. O desmantelamento do escritório foi estranhamente eficiente – porém estava mais para um esquartejamento, pois como milagre, funcionários seletos foram relocados para a própria Carcosa, embora eu não tenha sido incluída: fui um daqueles pedaços de carne que você descarta. O dinheiro que recebi de indenização dava pra viver bem durante algum tempo – talvez um ano; ou dois, vivendo mal.


A atitude correta teria sido correr atrás do prejuízo de imediato, e procurar um emprego novo, distribuir currículos e checar meus contatos; só que eu não fiz isso, algo exausto dentro de mim pedia um certo descanso, então prometi a mim mesma pelo menos um mês sem preocupações, sem trabalho, e depois disso, mãos à obra – esse tempinho não poderia fazer muita diferença. Outra decisão da qual me arrependo.


De qualquer forma, havia aquela questão que incomodava... um tanto amargurada, sentia vontade de procurar o Fabrício, mas não ia fazê-lo sem antes estar preparada... passei meu novo tempo livre pesquisando sobre o vizinho; foi quando descobri umas tantas coisas curiosas, e outras francamente estranhas. Fabrício Montalvão era bisneto de Cipriano Montalvão Bastos, o arquiteto que havia projetado o prédio onde nós morávamos. Inspirado pelo antepassado, imagino, tentou o vestibular para arquitetura, mas bombou duas vezes, e passou por fim em Letras. Chegou a conseguir o doutorado, vivendo de bolsa, como pesquisador, e nesse tempo aprendeu outras línguas além daquelas que eu pensava que ele conhecia – latim, galego, árabe, até mesmo basco e uma língua africana que nunca antes ouvira falar, o hauçá. Seu mestrado na verdade fora em História... a tese de doutorado lidava com semiótica e religião comparada... e embora não fosse especializado em literatura, publicou um livro de poemas com um nome que naquele momento me pareceu doido, Lemniscata Serpentina, pela editora da Universidade Federal de Novo Portão. Os amigos que frequentavam sua casa eram pesquisadores da época de bolsista, e alguns artistas que faziam serão para declamar poesias, tocar violão... lembrei que há cerca de dois anos, ouvi uma música desconhecida vinda do apartamento dele, e no dia seguinte perguntei o que era, ao que ele me respondeu ter sido o alaúde de uma amiga. Além disso, Fabrício não tinha parentes próximos vivos, a não ser que considerasse como tal a ex-mulher, uma moça que vivia numa chácara em Grotão. O casamento dos dois durou apenas três anos e meio, e ao completar trinta anos, Fabrício já estava divorciado e nunca mais se casou, nem teve outros relacionamentos duradouros. Ninguém sabia exatamente porque ele começou a evitar as visitas dos amigos – embora pelo menos meus contatos afirmassem que ele sempre foi do tipo anfitrião que preferia receber a visitar. Alguns dos mais chegados tentaram insistir em continuar o convívio, mas em pelo menos uma ocasião Fabrício empurrou uma amiga pela porta de casa.


Esse episódio de violência mínima quase me desencorajou de retomar o contato com ele; e me veio a vontade forte de procurar aquele corretor, vender de vez o apartamento, sumir dali para sempre e assegurar a sobrevivência por mais tempo. Ainda outro motivo de posterior arrependimento. Superando, embora com certa hesitação, as minhas reservas, decidi tentar surpreendê-lo quando estivesse saindo ou entrando, já que até então todas as vezes em que o vi foram pela varanda; ele andava apressado pela rua lá embaixo, saindo do prédio, sem que eu ouvisse antes passos pela escada.


Enquanto o mês passava também tentei me ocupar de encontrar o gato perdido no prédio; só que não achei nem traço de felino. Cheguei a descer até a casa de força, já me preparando para sentir cheiro de urina, mas não – em vez disso apenas encontrei alguns ratos mortos. Aliás, alguns não; muitos ratos mortos. Não sabia que veneno eles haviam tomado, ou se haviam levado choque elétrico, mas vários estavam de cadáver largado bem longe dos aparelhos que operavam a infraestrutura elétrica do prédio. Vencendo a repugnância – até porque era mais fácil manusear o corpinho pelo simples fato de que ele não estava fedendo como eu achava que deveria – levei um dos corpos a uma amiga bióloga – e ela não soube me dizer o que matou o rato, era como se o bicho simplesmente tivesse parado de viver. Minha amiga quis levar colegas dela até a casa de força, verificar o caso, mas eu pensei que, se fosse um mistério insolúvel, poderia muito bem atrair atenção de um dos jornalecos da cidade, e eu ia perder o sossego que tanto procurava.


Sim, procurava, apenas, porque não o encontrei. Durante aquele mês senti-me tão estressada quanto no trabalho, as tentativas com a poesia não rendiam coisa nenhuma, eu me sentia mal a cada três dias (fui ao clínico geral e nada foi detectado), passava às vezes a noite inteira acordada na varanda, fumando e ouvindo discos de vinil na velha vitrola que fora de minha mãe. E pelo menos duas vezes cochilei, jogada no chão frio, pés encostados contra o alumínio das barras de proteção... e nessas duas vezes aconteceu a mesma coisa esquisita: acordei, e a radiola estava tocando. Olhei o horário e notei que... havia dormido ali por uma hora e vinte (na segunda vez, por quase duas horas). Só que, como é que o disco ainda estava tocando, se ele necessariamente tem de parar com menos de trinta minutos de faixas...?


Matutei e matutei no assunto, e não soube como explicar. O relógio do celular estava funcionando direito, cheguei a mandar verificar por um técnico. E naquela segunda vez, quando despertei ao som dos Titãs tocando Flores... me retornou a memória daquele incidente tão inexplicável quanto, de Fabrício falando com uma Bartira imaginária. E a lembrança foi quase uma punhalada no meu cérebro, porque pude lembrar de cada palavra com precisão – e recordei de um detalhe que havia deixado passar, provavelmente devido ao choque daquela situação: ele falou da tontura, e de um acidente na antiga estrada que levava a Grotão, e era tudo verdade – mas ele havia falado como se houvesse ocorrido no dia anterior...! Suas palavras exatas: “Lembra daquela tonturinha que você sentiu quando saltou do carro, ontem?” O disco passou para a faixa O Pulso, e eu decidi – falaria com Fabrício naquela mesma noite.





Eram quase três da madrugada, mas eu estava tomada por um desses ímpetos que devem ser satisfeitos – era uma indignação misturada a uma curiosidade mórbida, uma revolta mesclada a uma genuína preocupação com Fabrício... e comigo mesma. Vesti uma calça voando, abri a porta, larguei-a aberta (quem é que entraria na minha casa, àquela hora, num prédio vazio...?) e marchei até a soleira de Fabrício Montalvão. Naqueles rápidos movimentos até me passou na cabeça, que eu estivesse apaixonada pelo homem – e se isso não fosse verdade, pelo menos admiti que estava obcecada por ele.


Bati. Ninguém atendeu. Silêncio mortal lá dentro... agoniada, testei a maçaneta mesmo sabendo que seria inútil. Só que não foi: a porta se abriu e diante de mim estava a sala do apartamento de Fabrício, em completa desordem, iluminada pela luz quase fosforescente da lua.


Parecia até de propósito, mas deixei essa ideia de lado – racionalizei que a perturbação do vizinho o havia deixado esquecido.


Gritei, “Fabrício!”, sem ser atendida. “Estou entrando,” fui anunciando. “Cadê você...?” fui procurando pela casa, e o homem parecia não estar lá. Entrava o vento frio pela porta aberta e balançava duas cabaças que estavam penduradas numa parede. Além da sujeira e confusão de coisas, havia até mesmo um daqueles ratos horríveis, deitado de cabeça para baixo, encostado num canto perto da porta do banheiro. “Gente...” murmurei chocada. Chequei todos os cômodos – o equivalente ao meu quartinho, bem maior por ter uma divisão diferente de aposentos, estava atulhado de livros, alguns deles bem velhos e outros de fato veneráveis, com capas de couro; aquela parte da casa cheirava forte a água sanitária. Ou a algum outro produto químico que lembrava água sanitária, pois nunca tive alergia a isso, mas já começava a me faltar um pouco o ar e a coceira a se instalar nos antebraços e no pescoço. Só faltava o banheiro. E, olha só, pensei... a única porta trancada. Bati.


Continuava sem resposta. Coloquei o ouvido sobre a porta e... lá dentro, ouvi uma respiração suave, mas forçada, arquejante. Não dava para pensar em mais nada senão arrombar a porta, o homem estava passando mal! – e como eu não tinha força para derrubá-la, voltei até meu apartamento e busquei a caixa de ferramentas que havia sido deixado por um ex-namorado. Por um momento tive a impressão de que alguém havia entrado na casa – eu havia mesmo deixado aquele caderno em cima da mesa...? Mas deixei isso pra lá e corri até o 301.


Labutei, tentei, tentei de novo... suava, porque tinha de me lembrar como fazer aquilo, coisa que só havia antes visto sendo feita; mas consegui; a lingueta soltou com um estalo. Arrombada a porta, abri-la exibiu uma cena que gelou minha alma até o fundo, fazendo-me tremer e segurar a maçaneta com força, para evitar uma literal convulsão. Se não caí no chão, foi porque já estava de joelhos para melhor derrotar a tranca...


Deitado no chão do banheiro de azulejos negros e ensebados, estava o corpo de Fabrício -- pálido, de uma tez praticamente cinzenta, de ventre para o chão e sem camisa, o pescoço torcido numa posição exagerada, vestido apenas com uma calça jeans surrada. A certeza de que ele estava morto veio em poucos segundos. Assim que a porta foi aberta, uma lufada de ar invadiu o banheiro e... a pele das costas do cadáver começou a afundar, formando uma depressão pulverulenta, erodindo de modo a delinear um buraco perfeitamente quadrado...e então mais uma vez, outra cavidade dentro da cavidade... como se um o espaço ausente de uma pirâmide invertida estivesse sendo esculpido com precisão nas costas mortas e cinzentas de Fabrício... um fosso dentro do outro... Não só o desenho era perfeitamente simétrico, como continuava a formar outra cavidade interna, e outra, e outra, e como mostrava ranhuras, detalhes, aspectos típicas de uma construção, um anfiteatro quadrado feito de carne e pó. Estruturas ficavam evidentes, sulcos, canais... Então a degradação atingiu o chão do banheiro, terminando de imprimir a planta tridimensional de uma bizarra e macabra localidade em miniatura... impressão que durará para sempre em minha mente, apesar de manter-se estável por apenas poucos segundos, antes do resto da carne morta desabar sobre a escultura negativa, levantando uma sufocante nuvem de cinzas, sangue coagulado, ínfimas lascas de ossos, e podridão.


Tossi desesperada, tentando respirar; as lágrimas corriam céleres pelo rosto e se misturavam à repugnância daqueles fragmentos carcomidos. Passei as mãos no rosto, apavorada, tentando enxergar – e percebi, olhos arregalados e vermelhos pela irritação, que não estava mais no apartamento de Fabrício...


Uma fossa acinzentada de calcário e metal fosco, cercada por paredões perfeitamente quadrados delimitando outras cavidades, até atingir os céus tomados de nuvens pesadas e turbilhonantes, girando ao redor de um nexo – e eu estava no fundo da cavidade, em seu centro exato, exposta ao ar frio.


Tentei recuperar o fôlego, mas não só o espanto daquela paisagem me consumia, como aquela atmosfera gélida – fria como o toque do aço – pesava densa sobre mim, cortando-me o pouco ar que entrava e saía dos pulmões. Era um novo e estranho mundo ao meu redor, de padrões simetricamente alienígenas em seus entalhes, arabescos e mandalas de pedra e metal, e as nuvens lentamente rodopiantes assomavam como uma massa grotesca e coagulada de ferrugem, sabe-se lá como, flutuando no céu.


Foi então que das mais altas bordas dos paredões simétricos que me cercavam, surgiu o primeiro vulto, destacado contra o céu primal e ominoso. Era uma figura humanoide, de braços excessivamente longos, desproporcionais para com relação ao torso bastante magro, vestindo robes de cor azul cobalto. Por algum estranho truque de distância, conseguia enxergar os detalhes mesmo àquela distância quase abissal. Numa percepção longe de ser onírica – nada daquilo parecia ser um sonho, tudo se impunha horrivelmente real – vi que outras sombras de robe aproximavam-se, e várias daquelas entidades, de postura hierática como a de um Anúbis, observaram-me das bordas mais afastadas à minha frente. Todos tinham as mesmas proporções aberrantes, incluindo uma esquisita cabeça como um... bulbo negro, negro como petróleo, encimando um pescoço curvo como o de certas aves aquáticas. Nesses bulbos não havia feição alguma, nem olhos, nem boca, nem nariz, nem nada...


Mesmo estarrecida, consegui trazer mais próxima da normalidade a minha respiração. Mas foi aí que o primeiro vulto gesticulou um báculo de pontas contorcidas e simétricas, e das nuvens ferruginosas no céu desceu um raio de luz, um facho de cor que não consigo determinar, algo entre amarelo, esbranquiçado, e cinza. O raio descia numa lentidão antinatural, e percebi que ele atingiria o centro profundo daquela enorme estrutura onde justamente eu estava, e prudentemente dei dois ou três passos para trás, mas temerosa demais para sair correndo.


A luz, ao chegar mais próxima, mostrava-se não só vagarosa como anormal, um facho repleto de imundícies viscosas, que dançavam repelentes e misteriosas, escorrendo de modo teatral pelo continuum do raio de luz. Eram coisas oleosas e perversas, e contorciam-se umas em torno das outras, serpenteando num padrão desordenado que contrastava de maneira abrupta com a simetria impiedosa daquela construção ciclópica. Aquele enxame de criaturas não tinha cor, era transparente, percebido como um paradoxo, uma ausência que se mexia e tornava-se negra em suas aglomerações mais espessas. E antes de tocar de fato a superfície do chão em que eu estava, uma horrenda sensação sinestésica tomou meu cérebro, e percebi que as imundices que preenchiam e moviam-se pela luz doentia eram também sons, ruídos e ecos, abafados e contidos pela luz.


"Eu sou minha própria prisão," sussurrou uma voz uivante e dolorida dentro de minha cabeça, que ao mesmo tempo bramia e ecoava fisicamente por toda a estrutura de metal e calcário esculpido. "Eu sou o poço, a escuridão batráquia, a mácula que se espalha e ao mesmo tempo se esgota dentro de si mesma. Eu sou o Tenebroso Han, maestro da morte, senhor da profecia interminável e da lemniscata serpentina, Thaagshaa dos nexos desencontrados. Aspira e engole estas minhas palavras, que exalo e libero pelo vazio luminal, e transmuta-as em escrita. Volta para teu lar, e prepara-te para meu retorno."


Congelada pela atenção que aquela... coisa... me dedicava, abri a boca para soltar um grito de pavor, mas fui impedida por uma mão de quatro dedos – de cor negra como o petróleo – que  segurou meus lábios, vinda por trás de mim. Uma figura como aquelas que observavam de cima afastou-me da luz – seu toque era ainda mais gelado que o ar – e caminhou para... dentro do facho, usando-o como uma espécie de... ponte, que cruzava mais rápido do parecia possível, caminhando com extrema economia de movimentos. Parecia andar em linha reta para a minha frente, embora na verdade estivesse subindo... eu não conseguia despregar os lábios que a entidade havia fechado, e percebi que, na parte de trás daquela cabeça cônica e bulbosa, estava um rosto. Humano. De cor pálida, quase acinzentada, olhos fechados... o rosto de Fabrício.


A visão foi demais para mim e desmaiei sobre o chão de pedra daquela cidadela interna. Acordei, banhada de suor, no piso do banheiro de Fabrício... sozinha. O cadáver, ou o que quer que fosse aquilo, havia desaparecido, ou nunca estado ali. Tentei me convencer de que havia batido a cabeça contra a porta, ou desmaiado de mal-estar, e tido um rápido pesadelo... e teria conseguido, se não fosse um pequeno detalhe.


Ao meu lado, estava um carvão de desenho, e um papel de caderno amassado e amarelado pelo tempo, que não vira antes – desdobrei-o e li, em minha própria caligrafia de garranchos, as palavras escritas em grossos traços negros, "Eu sou minha própria prisão..."






A folha de caderno era do mesmo tipo das páginas daquele caderno que estava sobre minha mesa, quando saí do meu próprio apartamento? Muito mais amarelada e gasta, porém parecia a mesma. Devolvi o papel ao seu estado amarrotado e enfiei-o no bolso, como se tentasse ocultar a evidência de algum crime... e de fato eu havia cometido um crime, invadido o apartamento de um vizinho, arrombado a porta de seu banheiro... e se ele voltasse da rua e me pegasse ali, um homem perturbado, talvez perigoso...?


Respirei fundo e preparei-me para sair dali, quando meus olhos pararam na porta aberta daquele quarto cheio de livros que dava para o poço do prédio. Pelo basculante veio um miado – mas daquela vez a voz do gato era um tanto diferente, o miado parecia mais uma monstruosa e abafada respiração asmática. “São meus nervos,” reagi pensando. Eu mesma também arquejei baixinho, aquele odor de água sanitária incomodava como se eu tivesse certeza que estava sendo envenenada por ele... “Envenenada, não – maculada,” o pensamento reagiu ainda mais instantaneamente. Eu precisava de um copo d'água.


Saí de perto daquele quarto opressivo e fui até a geladeira – um modelo antigo ressonava na cozinha de Fabrício, como se dormisse esperando a volta do dono. Abri e antes que pudesse encher um copo d'água, notei que alguma coisa volumosa estava socada no congelador. Abri com uma certa dificuldade e... era um pacote de trapos, envolvendo grosseiramente uma pilha de livros e cadernos. “Os livros de Fabrício estão me perseguindo,” a paranoia reagiu mais uma vez. Tentei suprimir essa sensação tomando rápido aquele copo d'água que havia vindo buscar – e quase cuspi fora, porque estava um tanto quanto impregnada de um gosto acre bem afim ao cheiro de água sanitária do qual havia vindo me livrar. Voltou então aquele impulso de resolução, de querer pôr as coisas em pratos limpos, que havia me levado até ao apartamento alheio. Tirei os livros do congelador.


Mas não iria ficar ali naquele apartamento – se os livros fossem alguma pista do que estava acontecendo, já que no mínimo iriam revelar algo sobre a loucura de Fabrício, teria tempo e lugar para analisá-los na minha própria casa. Então, vacilando entre a pressa e o cuidado, fechei a porta arrombada do banheiro e voltei para meu apartamento.


Chegando em casa, pus o pacote sobre a mesa. Meu próprio caderno continuava ali – não chegou a tranquilizar os caprichos de minha paranoia, mas já era alguma coisa. Livrei-me dos trapos úmidos – era uma camisa velha – e contei três livros diferentes, sendo dois de capas de couro como alguns que havia visto na biblioteca de Fabrício, e dois cadernos de tamanhos e volumes diferentes. Os livros mais velhos estavam em línguas que eu desconhecia – um deles era amarronzado e as páginas tinham a mesma cor do couro, suas letras árabes escritas numa tinta esquisita, de tom esbranquiçado e desagradável. Em comparação apenas, o segundo era mais normal, e eu conseguia reconhecer um português bastante arcaico; logo nas primeiras páginas havia uma dedicatória anônima em letras filiformes, “Para Cipriano...”. O terceiro era uma brochura com o título Lemniscata Serpentina, EDUFNP, 1983. Nem precisei checar o nome do autor para lembrar que eram as poesias de Fabrício... porém a capa apenas trazia o sobrenome Montalvão. Quanto aos cadernos, estavam repletos de anotações, cuja caligrafia decaía com o tempo. A diferença entre os dois era que um era na verdade um livro-razão de contabilidade, contendo o mesmo tipo de anotação, e dentro deste estavam guardadas algumas páginas de papel quadriculado. Esses papéis tinham a borda rasgada sem jeito, e exibiam desenhos bem curiosos, um tanto tortos do próprio esforço que seu autor obviamente teve em reproduzir alguma escala...


Pelo que li pelo resto da madrugada até o amanhecer, o diário de Fabrício – que era o primeiro caderno – contava que ele havia descoberto que seu bisavô pertencia a uma fraternidade secreta que se separara da Ordem de Cristo (que eram os templários portugueses, soube depois) no finzinho do século XVIII; do avô Deodoro herdara aquele tomo em português, cheio de poemas trovadoristas, que começavam de maneira bem bucólica mas adquiriam um tom bastante sombrio em seu encerramento. Os versos brancos da Lemniscata Serpentina haviam sido inspirados nessa poesia ancestral... e folheando o livro escrito por Fabrício, fui tocada pelo tom melancólico de várias de suas composições, teoricamente escritas numa época em que ele não estava depressivo. Uma deles, “Poema Sem Nome Nem Memória,” falava da perda da inspiração e do esquecimento. Cheguei a sentir de novo aquela náusea misturada com saudade, que havia sofrido ao tentar escrever nos últimos tempos.


De qualquer forma, anos depois de escrever e mesmo publicar com baixa tiragem esse livro, Fabrício desconfiou durante suas pesquisas acadêmicas que o livro do bisavô estivesse cifrado, contendo alguma mensagem secreta. Intervalos no tempo e páginas rasgadas do diário não revelavam quem ou o quê exatamente havia fornecido a chave para o enigma, mas essa chave estaria no livro em árabe – na verdade escrito em hauçá, em caracteres arábicos; apesar do título em árabe, “Asrar Douda Haka Mafhmitikch”. Esse tomo bem mais antigo supostamente havia sido escrito por um escravo muçulmano, um alufá (nome religioso que se referia tanto a marabus muçulmanos como a babalaôs animistas), envolvido numa revolta que custou sua vida. O malê transcrevera e comentara em sua língua capítulos selecionados do horripilante grimório De Vermis Mysteriis, ou na verdade alegava que aqueles trechos foram originalmente escritos em árabe e postos no latim pelo “mago” belga Ludovico Prinn. A maior parte das cópias desse “Mistérios do Verme” havia sido queimada pelas inquisições, logo aquela versão hauçá era uma raridade ainda maior, e fiquei imaginando onde diabos Fabrício havia desencavado aquele livro. As anotações continuavam falando de um culto africano mais abominado pelos islâmicos do que o Cristianismo que desejavam destronar; essa seita animista parecia a Fabrício ter elementos similares ao culto aos egunguns e ao Bòòríí – o segundo termo jamais havia ouvido antes – e suas cerimônias eram marcadas por danças mascaradas ao som de alaúdes sagrados e horríveis instrumentos de sopro sem nome definido. Os devotos dos cultos africanos mais... normais... em geral voltavam-se contra a tal seita assim que ela fosse percebida, mas isso não era algo fácil. Essa religião às vezes se infiltrava em outras, tanto para sobreviver quanto para corromper – pois seus adeptos se diziam inspirados pela “sabedoria dos espíritos estrelados” que eram anteriores aos orixás e outros heróis que haviam formado o mundo; anteriores ao próprio Alá; e seus ensinamentos eram grotescos e insidiosos, inclusive na prática de sacrifícios humanos. Os islamitas particularmente desprezavam e perseguiam o culto pela blasfêmia de afirmarem que a Pedra da Caaba continha aprisionado um espírito estrelado antiquíssimo, cuja libertação a seita vaticinava em detalhes, junto com o retorno do exílio de outras quantas entidades nefastas. Até lá, os espíritos presos na Terra – e ao mesmo tempo além da Terra, e na própria terra, no terreno, no ar que respiramos – emanavam e ondulavam; “serenos e primais, invisíveis e imundos, envergando as florestas e esmagando as cidades, maculando e escorrendo sua escuridão” sobre nós, humanos, sem que sequer nos déssemos disso. Uma das formas de ser poupado disso era praticar certos ritos de aplacamento e seus necessários sacrifícios.


Aquelas insanidades descritas me incomodaram – pareciam ficção mal escrita – mas não chegaram a me abalar tanto quando atingiram o âmbito de minha própria existência. Com as “Chaves da Profecia” encontradas no livro em hauçá, o tomo em português arcaico – de nome “Calendairo d'O Ladram de Sinas,” ou “Calendário do Ladrão de Sinas” – assumia toda outra conotação, pois revelava instruções para tornar uma estrutura arquitetônica “um forte para os Antigos Espíritos Estrelados.” A empreitada dependia de coisas obscuras como localização geomântica, alinhamentos astronômicos, “operações xenogoéticas” e não me lembro mais o quê, mas terminava com sacrifícios para consagração final. E naquele ponto da leitura, minha respiração congelou.


As fundações do prédio estavam sob os ossos de vítimas desses sacrifícios. Serviam de “pilares espirituais para os selos da lemniscata serpentina,” lembro-me perfeitamente desse trecho horroroso. As anotações do diário continuavam revelando que a fazenda que originalmente era o bairro de Vale das Caraíbas continha naturalmente uma senzala e que ele tinha quase certeza de que o local exato dessa senzala era o terreno onde o meu prédio fora construído. Compreendia então o que havia despedaçado a vida social e a sanidade de Fabrício Montalvão – e continuando a ler aquilo eu me arriscava a ir pelo mesmo caminho. Fechei tudo sem mesmo checar o livro-razão, ocultei os livros e cadernos de volta nos farrapos, numa desorientação insana guardei o pacote na minha própria geladeira... até hoje não sei porque... coloquei os objetos mais essenciais numa sacola e numa mochila e desci as escadas para me esconder num hotel.






Passei dois dias hospedada no Hotel DeCastro, com febre alta. Tentava dormir mas não conseguia – era o medo de cair nas fossas de pesadelo no apartamento de Fabrício, insônia nervosa. Eu não poderia ficar a vida inteira lá... mas uma inércia me impedia de fazer alguma coisa. O que me levou a cancelar a estadia e voltar a minha casa foi simples e sutil – numa placa enferrujada e quase escondida do saguão do velho hotel de três estrelas, a frase “Projeto Original de Cipriano Montalvão Bastos.”


Sem conseguir pensar exatamente para onde ir – minha mãe morava então em outra cidade – voltei ao meu prédio. Era dia ainda, felizmente. Tentei me acalmar, afinal de contas eu não tinha prova alguma de que haviam ocorrido assassinatos rituais no terreno do prédio. O nome lemniscata serpentina, em si, já havia sido ouvido por mim durante a pesquisa sobre Fabrício – podendo facilmente ter aparecido naquele pesadelo por pura sugestão gerada pelo meu primeiro contato com as fantasias de meu vizinho. O caso da placa no hotel era só uma coincidência. Revigorada por esse pensamento, subi as escadas decidida – o mais firme quanto permitido por minhas pernas cansadas.


Mesmo assim, entrando em casa e contemplando meu próprio apartamento, percebi a verdade inegável – eu não poderia mais morar ali. Sempre me lembraria daqueles dias, daquelas alucinações, e cabia a mim ceder ao corretor e vender o apartamento; se Fabrício realmente tivesse desaparecido, o prédio estaria vazio para sempre, imaginei, sem crer na fantasia, claro – alguém daria uso àquele prédio, e eu não queria nem saber quem. Meu vizinho podia ser apenas um maluco bonitão que viveria em minhas lembranças, e não um... bruxo que convocava espíritos de além do tempo e das estrelas.


Liguei para o corretor e ele marcou um encontro já para assinatura do contrato de venda, no dia seguinte, em seu escritório. O sujeito parecia aliviado, e eu não soube perceber a razão disso. Desliguei, e fui olhar o congelador... lá estavam as livros absurdos de Fabrício Montalvão. Bom, no mínimo eu tinha de tirá-los daquele lugar igualmente absurdo; cogitei se a loucura de meu vizinho era mesmo contagiosa. Seria melhor devolver aquilo, antes de ir embora de vez.


O pacote em cima da mesa da cozinha ficou me tentando de longe, enquanto eu fazia outra ligação, desta vez para uma empresa de mudanças. Uma vontade... absurda... de ler os tomos, e de checar o livro-razão que despontava daqueles farrapos de camisa. Bom, não custava dar uma olhadinha... extraí o caderninho de encadernação dura, estava úmido até demais, como se houvesse ele mesmo suado aquela água. Segurei hesitante e fui até o telefone da cozinha, com o caderno na mão, para fazer outra ligação para o corretor – seria melhor eu acertar a compra de um novo apartamento, usando o generoso dinheiro da venda, com antecedência – limpei o bocal com um pouco de álcool (parecia estar sujo como se houvessem passado dias sem uso), disquei e enquanto esperava que atendessem, folheei o livrinho.


Logo ficaram visíveis os papéis quadriculados, soltos – um emaranhado de coordenadas, notações, alguma coisa referenciando múltiplas dimensões, tubulação manifold, posicionamentos  do prédio com relação a rua e a outros edifícios e marcos naturais, o “poder protetor do àse,” rachaduras, vazamentos, rabiscos nas margens, e entre eles termos como “supercordas” e “entrelaçamento quântico,” que não esperava encontrar nas anotações de um linguista nem de um engenheiro, percebi outro nome que também não deveria estar ali: o meu nome, Bartira.


Engasguei e foi nesse momento em que atenderam. Pensei em alegar engano e desligar, sentar e absorver o baque, mas não consegui. Pois do outro lado da linha veio a voz... “Bartira,” a voz sibilante, envolta numa cacofonia como a de vários modems ganindo ao mesmo tempo; “escreva minhas palavras... (estalos)... seja o canal de minha profecia, e eu – EU – EU...” o eco trovejava nos meus ouvidos e parecia encher toda a casa, “devolverei sua inspiração. Seja (mais estalos) estrela serpentina, e seus poemas de sibila ganharão o mundo, como sempre (estalo mais forte) em segredo.”


Ainda era dia, e talvez a luz que vinha das janelas tivesse me dado coragem – gritei desesperada, “Não!!! Não quero trato com ninguém!!!” A voz do outro lado grunhiu, embora sem raiva, como se já esperasse aquilo, e só tivesse feito a proposta por desencargo de consciência. “Talvzzz você sejjjja a Bartira errada (estalos)...”, e o tom foi abaixando até ficar quase inaudível. Enquanto isso acontecia, eu havia jogado longe o livro-razão, e no canto onde ele caíra... os raios do sol começaram a… dançar... contorcer... e abandonar aquele pedaço da sala.


A escuridão – a ausência – resultante acumulou-se no canto, dando a impressão de um novelo de fios de trevas... e era como se algo estivesse sob a cobertura daquela massa totalmente escura, amortalhado e tentando sair, abrir uma brecha. Em poucos segundos – ou foram minutos? Minha percepção de tempo não estava muito precisa – alguma coisa rompeu a camada de escuridão, deslocando o ar e o próprio espaço ao seu redor, torcendo a arquitetura do quarto, e revelou-se como uma criatura a um só tempo batráquia e simiesca, curvada, feita de uma substância macabra e repulsiva, branca e empelotada, um horror sem rosto, onde viam-se apenas dois olhos muito negros, rasgados em fendas verticais, um em cima do outro, um onde seria a testa, o outro onde deveriam estar os lábios. Nenhum outro traço facial era discernível – nem o nariz, nem a boca, nem ouvidos. Apavorada, tentei correr, mas o monstro estendeu uma mão de seis dedos em minha direção, e toda pretensão de fuga morreu, minhas pernas tremeram e eu caí sobre os joelhos.


Estava pronta para aceitar a morte, era uma punição pela recusa, e eu não aceitaria – nem que tivesse que passar o resto da vida sem inspiração, sem mente, ou morrer, eu não seria porta-voz para aquela... coisa... o Tenebroso Han, maestro da morte, senhor da profecia interminável e da lemniscata serpentina, Thaagshaa dos nexos desencontrados, as palavras me vinham em recitação e eu tentava suprimi-las, até que a criatura aproximou-se e segurou meu rosto.


Pensei que iria me abrir a boca e obrigar a recitar o resto de uma litania que condenaria o mundo – mas não. A cabeça da coisa se aproximou, e eu pude ver naqueles olhos arregalados e sem pálpebras – e na fenda do olho inferior, pude enxergar... era uma figurinha humana nua, flutuando num líquido negro, e a figurinha era Fabrício, e Fabrício fez um sinal de silêncio com o dedo e a boca. As mãos da coisa então roçaram doze dedos em minha boca, num gesto abrupto como se estivessem sendo obrigadas a esse gesto, e senti meus lábios se colarem, exatamente como havia acontecido na alucinação das fossas. Preso no olho inferior da criatura, Fabrício falava palavras inaudíveis... cheguei a entender apenas os movimentos para meu próprio nome, Bartira, “fogo,” e “muito tempo.”


Nesse ponto consegui ganhar forças – e acho que nunca mais repetirei um gesto de ousadia como aquele, ainda mais no meu estado atual. Empurrei o monstro, que parecia estar com as mãos paralisadas, trêmulas, e derramei todo o vidro de álcool ao meu redor e sobre a criatura. No meu lado estava o fogão e suas caixas de fósforo. Pulando por sobre a mesa com uma delas, corri até a porta da cozinha, acendi e joguei.


Pelos gestos, a criatura teria urrado, se tivesse boca. Mas não esperei que ela me pegasse; eu precisava pelo menos tentar fugir, embora não tivesse muitas esperanças disso. Desesperada e afobada atravessei a soleira da porta do meu apartamento, descalça e desmazelada, e sem a ilusão de que uma porta pudesse deter aquele monstro, saí correndo pelo corredor do prédio vazio, já esperando ouvir os passos por trás de mim.


Não veio ninguém, mas eu não ia esperar ali de jeito nenhum. Desci as escadas numa pressa tamanha que só quando cheguei lá embaixo caiu a ficha de que eu estava descalça, de roupão e... assistindo uma fumaça sair da varanda do meu apartamento. Botei as mãos na cabeça, os lábios contraídos numa mistura de alívio e amargura, enquanto pensava que deveria voltar e salvar minha casa. Cheia de lembranças. Ou chamar os bombeiros, pelo menos.


Não consegui fazer nem uma coisa, nem outra – fui me afastando por uma viela perpendicular à rua do prédio vazio, observando a cena de longe conforme subia aquela ruazinha inclinada. Em dado momento simplesmente sentei na calçada, sem lágrimas, nem nada por dentro. A sirene dos bombeiros foi ouvida surpreendentemente rápido – mas eu não estava ligando, naquele momento, ou melhor, não conseguia ligar para nada: o futuro não importava. Eu podia muito bem ter me jogado da varanda, em vez de estar ali.






Hoje trabalho como cuidadora residente em uma casa de abrigo para doentes mentais, em Mirantes do Grotão. Longe do centro de Novo Portal e lidando com pessoas transtornadas, consigo evitar e esquecer o meu próprio trauma. Minha melhor amiga ali é uma paciente, dona Viridiana de Azevedo, que nos últimos tempos tem conseguido superar o seu mutismo e depressão, acredito que em parte graças à atenção que lhe dou. Às vezes sinto vontade de desabafar com essa senhora a minha história, mas continuo calada. Ela não mereceria saber. Mas eu continuo me lembrando, e de tempos em tempos certos detalhes do incidente voltam para me assombrar, mesmo que não cheguem a afetar minha vida prática... como a revelação de um velho colega, que me confidenciou que todos os apartamentos do prédio vazio haviam sido comprados, na verdade, por laranjas de um acionista das Indústrias Carcosa; e soube pelo jornal, que a construção sofreu outro incêndio, esse bem mais grave, há cerca de cinco anos... embora não fosse mais exatamente o mesmo prédio em que eu havia vivido: o novo dono mandou derrubar os andares superiores e o prédio foi convertido numa casa de dois pisos, onde haviam antes o térreo e o primeiro andar.


Eu não cheguei a ser indiciada por incêndio criminoso, nem nada disso. O acidente não foi tão ruim como pensei que ia ser, os bombeiros salvaram grande parte das minhas coisas, mas ninguém falou nada sobre cadernos, nem da brochura de Fabrício, nem Asrar Douda, nem Ladrão de Sinas. E para ser sincera, eu não tive coragem de procurar saber o que havia acontecido com esses tomos. Depois de quase dez anos, parece que envelheci mais de vinte, e procuro reservar minhas forças para meu trabalho. Nunca mais tive mais interesse – ou competência – em contabilidade, nem ânimo para a poesia, ou mesmo o amor. Não conseguia nem mesmo tentar.


Fabrício Montalvão nunca foi encontrado pela polícia – e ninguém jamais citou minhas impressões digitais em seu apartamento. Malgrado a incompetência da polícia de Novo Portal, isso é menos curioso do que o fato de que muitas pessoas negaram ter jamais conhecido Fabrício, como se ele nunca tivesse existido; e pareciam bastante sinceras nessa insistência...


De vez em quando voltavam lembranças de meu vizinho – e com elas, à noite, pesadelos com o que vi no livro-razão, mais até do que com o incêndio, o monstro empelotado, as fossas dentro das fossas... pelos clarões de entendimento que minha memória forçava através desses sonhos, eu estava certa de que Fabrício estava tentando evitar um mal maior, talvez desperto por ele, talvez não... mas os desenhos que lembro me deram a nítida ideia de uma prisão, de procedimentos de contenção para vedar as rachaduras de paredes invisíveis... o bisavô de Fabrício devia ter sido o responsável por aquela... armadilha, é a única palavra que consigo usar para definir o prédio vazio. Como aquela armadilhas para baratas que não vejo mais à venda, que eram pequenas casinhas de plástico negro onde os insetos entravam para comer e morriam. Só que nesse caso as coisas que estavam dentro da Fossa das Fossas não podiam morrer.


Mas podiam estender seus tentáculos através das fendas que estavam se alargando, e eu tinha certeza de que, por alguma razão, o fogo que pus no meu próprio apartamento vedou por um tempo as rachaduras. À tardinha, fico na janela de meu aposento no abrigo, diante do velho e pouco visitado monastério do bairro, em cuja igreja às vezes entram e saem pessoas de aparência solitária – e às vezes me vem a impressão forçosa de que não foi o fogo físico que teve algum efeito, mas o meu próprio holocausto, que a Luz Leprosa consumiu meu futuro: não me joguei da varanda, mas perdi minha casa (e mesmo ela tendo sido vendida, foi para outro corretor que não aquele, o dinheiro não compensou de verdade mas foi tive medo de ir ao escritório do ofertante original), meus talentos, minha vida social, e só não perdi minha sanidade porque me escondo aqui ajudando outros quem sabe mais infelizes que eu... e me protegendo de algum dia descobrir coisas que expliquem melhor aqueles eventos do passado, coisas que levem de vez minha mente e revelem porque exatamente o Tenebroso Han, maestro da morte, senhor da profecia interminável e da lemniscata serpentina, Thaagshaa dos nexos desencontrados, queria que eu fosse seu canal, sua trovadora, sua profetiza.


E em meus pesadelos eu sei que o Ladrão de Sinas se banqueteia com a mera possibilidade de, numa outra vida logo além das muralhas de meus sonhos, eu ter aceito o seu convite. Acordo suando frio e chegando à janela para tomar ar, quase agradeço pelo céu poluído e as luzes da rua lá embaixo impedirem a visão das estrelas – a visão da sabedoria estrelada que há uma década recusei.


















NOTAS E AGRADECIMENTOS
Agradeço a Zé Eduardo por uma dica sobre história e arquitetura; a Suria Neiva por tirar uma dúvida sobre os malês; a Neith War por ter provocado o estalo que levou à criação do Tenebroso Han; a Carolina Gharbi e Livia von Sucro por proporem transliterações para o Asrar Douda Haka Mafhmitikch.
A entidade “Tenebroso Han” (“dark Han”) é citada originalmente no conto O Errante das Estrelas (The Shambler from the Stars), de Robert Bloch, junto ao Yig de HP Lovecraft e a um certo Byatis das barbas de serpente, como um deus da adivinhação, no De Vermis Mysteriis. A frase na versão haúça desse tomo, “serenos e primais, invisíveis e imundos, envergando as florestas e esmagando as cidades” é na verdade uma alusão a um trecho do Necronomicon que aparece em O Horror de Dunwich, de Lovecraft. A “seita da sabedoria estrelada” é citada na – por assim dizer – continuação do Errante das Estrelas, feita por Lovecraft, “O Assombro das Trevas.” O tratamento dado ao Tenebroso Han é tanto uma tentativa de seguir o exemplo de Ramsay Campbell, que desenvolveu Byatis em seu conto The Room in the Castle – conto que infelizmente ainda não li! – quanto um encaixe perfeito para um Antigo sem nome que eu já havia imaginado. Em um documento separado, delineio o Antigo e as criaturas, cultos e tomos a ele associadas, para o RPG Rastro de Cthulhu.
Vários elementos e locais deste conto aparecem em outros de minha autoria, como O Farol na Escuridão e A Lâmina na Ponta do Reflexo, que estarão na coletânea Simetria Macabra: Crônicas do Mythos de Cthulhu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário