segunda-feira, 6 de agosto de 2012

A LÂMINA NA PONTA DO REFLEXO


Arthur Ferreira Jr.'.
Escrito em Fevereiro de 2011 e Reescrito em Julho de 2012



"My reflection, dirty mirror
There's no connection to myself
I'm your lover
I'm your zero
I'm your face in your dreams of glass"
Smashing Pumpkins, “Zero”

"E naqueles três dias, só uma coisa me aliviou o cansaço provocado pelas providências a tomar e pelos estranhos e inesperados pesadelos. Essa coisa foi Anna."
Virgílio Mago, em “O Farol na Escuridão”






"NÃO DIGA QUE SOU INOCENTE!", meu grito ecoava pelos corredores da mansão.

"Eu já cansei de dizer a você, tenho dezessete anos, já voto nos corruptos que você apoia. Nem queira que eu continue com a lista de razões que lhe convençam de que eu não sou uma menininha ingênua, pai." Eu ofegava e me agarrava com unhas e dentes (naquele ponto, mais unhas que dentes; se ele insistisse muito, os dentes agiriam) ao grosso pacote de livros em cima, apertando-o de jeito a quase esmagar meus próprios seios.

"Anna... esses livros não são para você. São parte do meu negócio de antiguidades, nem mesmo eu dou tanta atenção a eles. Largue isso... agora mesmo." O homem parado à minha frente, de voz firme mas mãos trêmulas (começava a mostrar os sinais da doença de Parkinson), não se parecia em nada comigo, mas era meu pai. Olhos muito negros, a calvície incipiente eliminando os cabelos também muito negros, aquele era o senhor Vicente Leonardi, meu pai adotivo.

"Se são negócios, então, eu pago. Tenho minhas reservas de dinheiro, a mesada que você mesmo me dá não é gasta com bobagens, você mesmo me ensinou isso", meus cabelos ruivos, levemente encaracolados, cobriam parte dos meus olhos, mas eu não estava nem aí, de tão furiosa. "Não sou igual às minhas amigas, tenho direito a ter meus próprios interesses, então estou comprando esse pacote."

"Anna. NÃO. E não me faça repetir. Acontece que estes livros..." foi interrompido pelo ruído da porta do gabinete sendo aberta, e um rapaz louro, magro mas atlético, de feições duras mas olhos afáveis, entrou, abotoando sua camisa polo. Esse era meu irmão... meio-irmão... meu melhor amigo dentro daquela casa, Victor. Ele olhou bem fundo em meus olhos verdes e virou-se para papai, "Deixe, afinal de contas ela precisa aprender a gerenciar os próprios desejos. E vai fazer isso com o dinheiro que tem. Os livros são bem caros, não é? Não faça desconto, então, papai. Deixe que ela pague por seus caprichos, vai ter que aprender com isso."

O velho abanou a cabeça, pensativo: "Aprender, hum... não sei, não sei, as coisas nesses livros..."

"Fantasias, papai." Victor sorriu, condescendente. "Outra coisa com que ela vai ter que aprender a lidar. A frustração é uma excelente professora."

"E o arrependimento, mais ainda," murmurou papai. "Está bem, meu filho, quem sabe você tenha razão. Faça o depósito na minha conta, Anna. E agora saiam os dois do meu escritório, preciso rever umas contas, e quero paz. Coisa que nenhum dos dois me dá de graça."

Saí correndo, de braço dado com Victor. "Essa foi fantástica, sabia? Nunca deixo de me maravilhar com o jeito que você dobra ele e outras pessoas." Afobada, fui indo na direção do meu quarto, segurando o pacote e sem deixar de agarrar o braço do meu irmão. Na porta do cômodo, Victor riu e falou, sussurrando: "Já vai querer me agradecer pelo favor?"

"Victor, pare," olhei meu irmão adotivo bem no fundo dos olhos, como ele costumava fazer comigo, "bem sei que o que fazemos não é errado, você não é meu irmão de sangue, mas ainda estamos de dia, vai dar na vista dos empregados. E aí eu quero ver o que é que você ia inventar pra papai."

"Não me teste, sua boba." Ele riu e se desvencilhou do meu braço. "Eu sei que você quer agora é explorar seus novos livrinhos. Vai juntar àqueles que você comprou, escondida de papai."

Resmunguei uma resposta qualquer e fechei a porta. Não na cara dele, que já estava adiantado no corredor, rindo baixinho. E então, fiz exatamente o que ele disse que ia eu ia fazer.



OS MANUSCRITOS PNAKÓTICOS ainda não estavam completos, e provavelmente eu ia levar muito tempo na compilação. Mas o Liber Ivonis estava ali, e também uma versão em italiano dos Cânones do Kleshayana... juntei tudo em cima da cama e peguei o Percepções Anômalas do Tempo, do psicólogo Wingate Peaslee. Esse livrinho foi bem popular no século XX e hoje em dia, embora tenha virado uma obscuridade, é citado até por autores de autoajuda... ainda bem que eu consigo chegar às fontes com mais rapidez do que as outras pessoas.

Se tem alguma coisa que me interessa mais do que sexo, é conhecimento. Então, nada de brincadeiras com o irmão adotivo nessa hora do dia. O capítulo do dr. Peaslee sobre a Hora do Sonho, dos aborígenes australianos, ia me ajudar muito naquele momento.

Eu sempre gostei de brincar com o desconhecido, também. Era o que me dava mais tesão, além de brincar e jogar com coisas extremamente familiares e íntimas... tipo meu irmão adotivo. O que seria mais desconhecido que o que se esconde no fundo dos sonhos? Se o que eu juntara a partir dos livros estava certo, eu podia assegurar para mim algo muito mais importante que ser a menininha mimada, herdeira de metade da fortuna de uma família tradicional da grande metrópole de Novo Portal.

Tudo se reduzia, então, ao ego. A existência era maior do que a identidade. A identidade não queria morrer e por isso éramos egoístas. Como impor a identidade à existência? Eu adorava ser quem eu era, e não queria deixar de ser eu mesma, depois de morrer ou sei lá o quê. Não importa o que viesse depois da morte. Ou se não existia nada depois da morte. Eu não queria ser mais do que eu era: queria assegurar que seria a mesma. Era uma ideia sensual a que eu acalentava, que chegava a me fazer tremer. Impor a vontade sobre o universo...

Segundo as anotações que eu tinha feito... estava começando a juntar tudo em capítulos ordenados, o primeiro recebera o nome de “Simetria Macabra”... tudo se resumia, também, à linguagem: os sonhos eram uma linguagem, a linguagem da eternidade, do inconsciente, tentando se comunicar com o ego, a identidade, proporcionalmente menor, aquela ponta do iceberg da mente. Do topo do meu próprio iceberg eu conduziria as marés geladas ao meu favor, então: era essa a vantagem de se estar acima da superfície, enxergar o horizonte.

Então, a linguagem. Os sigilos. Os símbolos anciões da yog-sothotheria. Eram vários símbolos os que eu havia coletado, aqueles símbolos anciões, como o que parecia uma folha de palmeira, aquele que parecia um pentagrama distorcido, o símbolo amarelo... eu já havia conseguido forçar um pouco da magia, a yog-sothotheria, daqueles sígilos; mas não tinha conseguido resultados muito impressionantes, pelo menos não para o meu grau de exigência.

O Cânones do Kleshayana falava da importância de uma arma mágica: um instrumento com que manipular a tessitura da existência... e, como só podia ser, com a arma escrever os sigilos anciões que abriam os Portões da Eternidade. Outros... magos... usaram armas como varinhas, bastões, chaves prateadas, enfim, coisas que dão uma sensação de poder ao serem empunhadas. Qual seria a minha? O Kleshayana dizia que deveria ser algo pessoal.

Fiquei nesse impasse até que aconteceu um acidente...


NUNCA VI UMA RACHADURA TÃO PRECISA. O espelho era da mais pura qualidade, rendia centenas de dólares, e o haviam deixado despreocupadamente num dos cantos da casa. Fui cutucar, atraída por aquele brilho soturno que ele tinha... o espelho era quase melancólico. Sempre fui tão afoita. Quebrei o espelho.

Sete anos de azar, hein? Foda-se.

Preço muito baixo a se pagar pela arma mágica que eu precisava: o espelho rachou, crac! e o fragmento que dele se destacou tinha a forma muito similar à de uma adaga... era uma adaga feita de espelho! Me ajoelhei e segurei a adaga de espelho em minhas mãos... a parte que deveria ser o cabo não era afiada, e não me machucou. Já a ponta... afiadíssima.

Fiquei ali, encantada com minha própria imagem, meu reflexo, minha identidade, surgindo nos lados da adaga, que eu virava com a mão... começava a me perder em minha própria epifania, e o encanto devagar se transformou em horror... coisas, coisas macabras, coisas medonhas, viviam além dos sonhos, entre os mundos, e queriam tomar minha adaga! Eram criaturas nojentas, feitas de uma substância empelotada, branca... e eles queriam minha adaga. Não, eu não podia deixar que eles levassem minha imagem, meu reflexo, minha identidade, minha arma mágica.

Eu só podia lutar. Sempre fui tão afoita. Tinha que defender minha propriedade, minha imagem, meu reflexo, minha identidade. Girei a arma na mão e fiz um movimento de corte para a frente, rasgando uma daquelas coisas – parecia o líder, era maior e mais ameaçador, tinha seis dedos em cada mão e nada no rosto a não ser dois olhos transidos, um em cima do outro, que se colocava onde devia estar a boca – e a coisa caiu no chão, ferida, mas não morta. Os outros sumiram.

Tudo aquilo tinha sido como uma vertigem. Uma miragem. Eu me reequilibrei e percebi... que quem estava ferido no chão era meu pai. Mas que merda!

O velho foi se levantando e disse, com raiva, a barriga rasgada por um corte fundo, segurando a hemorragia com uma das mãos: "Eu estou bem! Mas você, você não está nada bem. Eu disse que não devia ficar lendo aqueles livros! Me dê esse caco de espelho, AGORA!"

Dar a ele minha adaga ritual, pela qual devia pagar tão caro, sete anos de azar? Nem fudendo.

"NÃO! Não vou dar, ela é minha!"

Ele avançou para mim, esquecendo o próprio ferimento, gritando, "Me dá isso aqui, menina..."

E então aconteceu. Eu não queria perder minha adaga, e não queria perder meu pai. Sempre fui tão afoita. Decisões tomadas num milésimo de segundo. E imagina quem perdeu?

O cadáver do homem que havia me criado estava no chão, e a adaga, firme e segura comigo. Não percebi que meu irmão havia entrado no quarto e sua voz soou perto de mim, "Ele não tinha mesmo razão. Você... não é nada inocente."



EU AINDA ERA MENOR DE IDADE e meu irmão precisava acobertar aquilo. Uma das criadas levou a culpa, havia tomado uma droga alucinógena por conta própria e acabara agredindo meu pai. A coisa da droga era verdade, ela só não era tão alucinógena, e meu irmão fez questão de arranjar as coisas como se tudo parecesse verdade. A adaga funcionou muito bem, mas não era suficiente. Nunca nada é suficiente. E eu agora já tenho outras perspectivas, outros horizontes abertos, estou na universidade, no exterior, para onde meu irmão me mandou, enquanto ele ficou de custódio da minha parte da fortuna durante aqueles dois anos.

Durante aquele tempo ele fora um bom amante, mas nunca com a mesma intensidade, depois da morte de papai. Acabei percebendo que meu irmão não servia para os planos que eu tinha. Uma pena, quem sabe eu teria de arranjar outra pessoa...

Sem contar que percebi que, estudando em Massachusetts, dificilmente teria tempo pra meu irmão. A ideia era aproveitar o máximo possível antes de meu inevitável retorno... durante os dois últimos anos, minhas pesquisas e andanças me renderam alguns frutos, ou melhor seria dizer, algumas sementes que poderiam gerar os frutos que eu desejava. Minha busca pela supremacia da identidade sobre a eternidade poderia se revelar numa única palavra: imortalidade.

Mas eu tinha certeza de que as lendas alquímicas sobre imortalidade, dentre outras balelas que andei lendo, não seriam a melhor trilha para seguir. Elas não representavam adequadamente o domínio da identidade sobre a eternidade... e meu poder rudimentar na yog-sothotheria acabou mais uma vez se revelando apenas uma brincadeira, eu queria avançar para um novo estágio, mas estava paralisada.

Foi então que me caiu nas mãos um diário de um certo Walter Gilman, décadas antes um estudante na mesma Universidade Miskatonic onde eu estava. Esse diário estava cheio de anotações de matemática e física, comparações com ideias básicas da yog-sothotheria (seria ele também um iniciado? Mas o livro não continha instruções práticas, só teorias) e conceitos que só depois da época do autor seriam postulados publicamente. Eu até cheguei a acreditar que o livro era uma farsa, mas um contato em quem eu confiava – um professor cinquentão que sutilmente dava em cima de mim – assegurou que não, que era verdadeiro, mas que o livro não era levado muito a sério e estava guardado na Biblioteca da Miskatonic mais como uma curiosidade do que por outra coisa. O autor, contou-me esse professor, havia desaparecido misteriosamente em sua época e um colega ficara com o diário, mais tarde doado à Universidade.

Mesmo fazendo Belas Artes, tive de cursar matérias de matemática e física, para compreender direito o livrinho. E consegui uma cópia dele. Ao contrário de outros guardados a sete chaves na seção proibida da Biblioteca, aquele era considerado inócuo... tanto quanto uma brochura de pouca tiragem, Azathoth e Outros Horrores, do poeta lúgubre Edward Derby. E ironicamente esses dois livros me levaram ao passo seguinte em minha busca.

Usando as ideias dos livros de Gilman e Peaslee, mais as inspirações providas por Derby, consegui um vislumbre: um caminho de poder. Minha cópia do Cânones do Kleshayana não passava de um comentário quase leigo a respeito daquela seita bizarra oriental que era o Kleshayana, escrito por um mercador italiano que havia se envolvido com esse culto indiano. Mas havia me dado as primeiras chaves para a yog-sothotheria. E voltando a ler os Cânones, pude perceber uma série de alusões que ficavam claras... as anotações de Walter Gilman falavam de hipergeometria, mundos paralelos, coisas que hoje são cobertas pela teoria das cordas e pela física quântica. Segundo ele, haviam infinitos mundos, separados por malhas ou corredores, onde espreitavam criaturas geométricas e seres incompreensíveis. Já o psicólogo Peaslee falava de uma tribo aborígene que tinha a Hora do Sonho – uma dimensão criativa a partir da qual nasceu o mundo, e que é acessada por sonhos e epifanias xamânicas – como uma camada protetora que separava este nosso mundo natural de outras realidades, universos como... espelhos... mas espelhos muitas vezes distorcidos, reflexos quebrados. Os Cânones mencionavam um ritual macabro: um sacrifício geraria o poder suficiente para iniciar uma jornada iniciática, perfurando uma parede de sonhos e fazendo a sacerdotisa saltar de um “símile” para outro, roubando segredos de vidas diferentes e finalmente retornando com a imortalidade. Esses símiles eram referenciados pela palavra alemã doppel, apesar do texto estar em italiano. Não se referiam às transmigrações do budismo tibetano (que os ignorantes normalmente chamam de reencarnações), como eu pensara inicialmente. Depois de ler as poesias de Derby, percebi o óbvio que havia se escondido de mim durante aqueles anos: era possessão, eu poderia caminhar por entre os corpos de minhas cópias em outros mundos, conseguindo seus segredos, impondo minha própria identidade às minhas infinitas variações e assim domando a eternidade!



MAS O RITUAL EM SI ainda estava inacessível. O livro só o citava, não o continha... praticamente enlevada pela poética derbyana e por estranhos sonhos dos quais não conseguia me lembrar por completo, pintei seis quadros diferentes esboçando minhas intuições sobre o ritual – mas nada disso chegava a ter qualquer aplicação prática. A frustração, com o passar das semanas, foi tomando conta de mim, e depois de uma noitada pelas boates de Arkham, tentando extravasar, eu trouxe comigo uma dose de liao: uma droga de origem chinesa, caríssima, e dizem, derivada da infame lótus negra. O que me contavam das viagens daquelas drogas me chamou a atenção, quem sabe com a mente mais aberta, eu conseguiria quebrar o segredo do ritual, sem precisar ir até o Tibete e passar talvez anos, correndo grandes riscos, procurando o Culto do Kleshayana, que não deveria ter o nome de “veículo da corrupção,” “caminho do veneno” à toa?

Tentei algo diferente. Fiz um círculo de proteção com o símbolo ancião amarelo, esmaguei três cápsulas de liao e joguei o pozinho numa solução de soro fisiológico, dentro de um nebulizador. Liguei a QuickCam, estava começando a filmar minhas operações mágicas, por conveniência ou até curiosidade com a nova tecnologia. Mas não deixava de ser irônico o modo com que estava me entregando àquele estratagema da alquimia taoista, mesmo depois de toda minha repulsa por alquimia. Ou talvez, minha ignorância da alquimia. Talvez eu tenha errado em algum ponto do processo... talvez estivesse cansada demais, depois de tanto sexo e música noturna; mas agora, agora eu agradeço por qualquer erro que eu tenha cometido antes de pôr a máscara do nebulizador no rosto e inspirar fundo, girando a adaga de espelho em gestos ritualísticos, libidinosos, como se ela fosse um pêndulo rasgando os espaços, diante de meu rosto.

Agradeço que pelos erros eu tenha conseguido a vitória. Mesmo que não tenha sido como eu planejava exatamente... alguns minutos ali e minha vista começou a distorcer, os cheiros começaram a se confundir e me vi envolta num turbilhão de tempo e espaço. Toda audição havia sumido – meus ouvidos foram enchidos de um zumbido ameaçador e depois, nada. Ruídos brancos num buraco negro... quando de repente uma figura espectral surgiu diante de mim, e não sei como, ultrapassou as proteções do círculo amarelo. Aquilo não deveria acontecer, pois só eu tinha permissão de estar ali dentro do círculo.

Não, o círculo não estava falho. O vulto se aproximou, envolto em chamas verdes, e seus olhos estavam amarelados, quase dourados, com o poder do símbolo no círculo, seus cabelos vermelhos como os meus, suas formas femininas e nuas, idênticas às minhas... ou quase idênticas... era como se fosse uma duplicata mais velha, um... símile.

Entrei em pânico, e num instante de horror, eu compreendi. Não consegui reagir, a lâmina na ponta do reflexo, cravada bem no centro de minha testa – e desfez-se, escoando, escorrendo para dentro da ferida, numa nuvem de miasma amarelado que apagou as chamas verdes que a envolviam. Minha identidade foi esmagada, anulada, empurrada para abaixo da linha do inconsciente – e sobre aquele iceberg psíquico, imperou Anna Feiticeira, já de posse dos segredos do ritual, vinda de outra dimensão para roubar o corpo de sua duplicata.

A última coisa que eu vi e senti foi a morte de meu pai, repassando continuamente diante dos olhos da mente, e a cada vez mais uma memória mais fragmentária e distante, substituída pelas fórmulas do ritual, pelas inúmeras variações do ritual em miríades de realidades onde o Kleshayana se manifestava com diferentes nomes e em diferentes culturas – a necessidade do sacrifício de um feto de menos de cinco meses, segundo os aborígenes, antes da entrada formal do espírito da criança, vindo da Hora do Sonho; uma versão cigana da carta do tarô A Morte, rasgada em dois e revelando três meses e treze dias como o momento ideal para o aborto; o pai da criança deveria ser um visionário onírico, alguém com o dom inato de sonhos lúcidos; numa segunda etapa o ritual imolaria a sacerdotisa, transportando-a para o corpo de uma de suas símiles... e o Kleshayana não se importava se o ritual deixava para trás um leviatã caçador de sonhos, o tulpa aberrante do embrião sacrificado; nem com a trilha de símiles absorvidas pela sacerdotisa que buscava o poder total e a verdadeira imortalidade.

Por fim a visão de meu pai expirando, no chão, coberto de sangue, encerrou com seu rosto transformando-se no de meu irmão adotivo Victor, sussurrando no estertor da morte, como nunca havia acontecido: “Você ainda não estava... pronta...” Passado, futuro e possibilidades se misturavam, e não estando pronta nem digna, acabei morrendo naquele pesadelo, junto com os dois; mas não importa. São memórias tolas, embora agradáveis, pois mostram os meios de minha vitória. Sou Anna Feiticeira, e esta não foi a primeira nem a última vez que matei a mim mesma, mas continuo viva, desejo e sabedoria unidos numa busca que talvez não tenha fim; mas dizem que o que vale é a jornada e não a chegada, não é mesmo?

E olhando mais uma vez o reflexo na ponta da lâmina, penso divertida: eu sou a própria advertência “Cuidado com o que deseja!...”

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